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Há liberdade sem verdade?


tags: Padre Rodolfo Leite Categorias: Opinião quarta, 02 outubro 2019

Anda por aí muita gente que ainda não se apercebeu que escolher com «liberdade» não significa escolher «bem». É bem evidente que, se o nosso raciocínio, se o nosso modo de pensar na vida e nas coisas da vida, nas escolhas pessoais e nas decisões, é confuso ou errado, como poderemos escolher «bem»?

Nunca como hoje, é importante perceber que a falta de lucidez do pensamento é uma doença mortal da liberdade. Pensar mal leva a escolher mal. Mas, por aquilo que vou constatando, parece-me que são poucos os que reconhecem que “não pensam bem”. Acham que, se “eles” pensam, que se “isso” é o que “eles pensam”, então está bom! Será mesmo?

Vejamos dois exemplos do dia-a-dia. 

Alguém me contou que resolveu ir com a família passar, pela primeira vez, um fim-de-semana a Madrid, como prémio pelo filho mais velho ter completado o 12º ano e ter entrado na universidade. Lá iam todos, de carro, cheios de entusiasmo. O rapaz premiado assume o volante, pois também já tinha tirado a «carta». Estava ansioso por chegar a Madrid. A viagem correu bem, já que nas autoestradas «é sempre em frente»! Na entrada da grande cidade, o pai perguntou-lhe:

– Não é melhor marcar no GPS o caminho até ao hotel, para não nos perdermos?

O filho sorriu e, com um ar de superioridade de quem tudo sabe, nem se dignou responder ao pai. E, ei-lo, conduzindo por um emaranhado de ruas e avenidas, com uma segurança magnífica. Aparentemente, ele sabia o que estava a fazer e para onde ia. Até que, duas horas depois, todos, naquele carro, já tinham percebido que estavam perdidos…!

Outra experiência, que dispensa comentários, é a dos fracassos e deceções nos relacionamentos entre casais, que vamos assistindo à nossa volta, infelizmente, numa quantidade quase incontável. Em muitos desses casos lamentáveis, o que houve – além de sérias falhas morais – foi um engano. A pessoa – apesar das observações objetivas de amigos, de colegas, de familiares – envolveu-se numa relação com alguém, decidindo formar família. Achava que os outros não a entendiam. Só ela sabia! Até que, passados poucos meses, ou um ano, ou dois, teve que dizer, com uma dose de humilhação: “Eu enganei-me”, “Eu não sabia…”! Agiu com total independência, com absoluta «liberdade», mas sem nenhum conhecimento profundo, sem a base da razão esclarecida, que é imprescindível para se viver a verdadeira liberdade.

O Papa São João Paulo II não se cansou de insistir em que «o conhecimento da verdade é condição para uma autêntica liberdade» (Encíclica Veritatis Splendor, nº 87). Com estas breves palavras, afirmava algo de essencial. É óbvio que, se um engano – uma falta de conhecimento da realidade, da verdade das coisas – em assuntos como o casamento ou a profissão, pode ser danoso e até mesmo frustrar a nossa vida, mais ainda nos pode arrasar o erro a respeito dos verdadeiros bens, do verdadeiro ideal, do verdadeiro sentido da nossa vida. Deus queira que não sejamos daqueles que só se dão conta de que erraram redondamente quando já estão sem retorno, na velhice ou à beira da morte: “Eu achava”, “Eu não percebi”, “Agora é tarde…”!

A liberdade autêntica precisa da verdade, que lhe dá sentido, rumo e firmeza; que é como a estrela que lhe marca a orientação; que a conduz e a potencia para construir e não para destruir. É – dizia alguém – como o sangue arterial para o corpo!

Aliás, isto é o que não conseguem entender os que confundem a «liberdade» com o «desejo» e a «autenticidade», com a simples «espontaneidade irrefletida». Perdidos num “espontaneísmo” simplório, e num conceito também superficial da liberdade, entendida como livre escolha de gostos e desejos, não conseguem aprofundar, nem conseguem entender aquelas pessoas que são livres, na verdade: aqueles que agem movidos por um ideal bem conhecido, por um raciocínio objetivo e sábio, fruto de séria reflexão; os que, por isso mesmo, tomam decisões inteligentes e livres, não presas aos estados de ânimo e às oscilações dos desejos, muito menos às ilusões de cada momento.

Já agora, o Amor de Deus marca o caminho da verdade, da justiça e do bem de qualquer pessoa que O acolha. Quando esse Amor está e atua em nós, ficamos livres de todas as cadeias que nos atam a coisas sem importância, a preocupações ridículas, a ambições mesquinhas. A liberdade de cada pessoa – esse tesouro incalculável – emprega-se assim, inteiramente, em fazer o bem. 

Na verdade, sejamos livres!