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A Oeste de Veneza


tags: Ferraz da Silva Categorias: Opinião quarta, 16 outubro 2019

A oeste de Veneza fica Pádua, ou Padova, e foi ali que há uns tempos encontrei Soror Juliana no átrio da grande basílica dedicada ao santo dos santos e lhe perguntei se sabia de onde era natural o ditoso apóstolo do Senhor, Il Santo!

-“Il Santo, não sei, será de Pádua”…

Respondeu a freira delicadamente endossando-me na dúvida para a secretaria “basilical”, para me informar melhor do nascimento de António.

-“Il Santo, irmã, não nasceu aqui”, respondo à serva do Senhor, “mas em Lisboa, Portogallo, nascido e criado dentro das portas da cidade nas faldas da sua Sé”.

-“Ah”, ripostou Soror Juliana do Divino Espírito Santo, “não sei, não fazia ideia”…

Agradeci à freira a não informação e, quando ela se afastou, dirigi-me à igreja, não para saber do nosso Fernando de Bulhões (1195) nem para ver a fita digital que nos anexos da catedral o mostra, mas para visitar a igreja e a sua imagem ali representada pela arte italiana da região, o Véneto. Quer na fachada do templo, acima do portal, quer no silêncio interior.

Embarcado numa nau para Marrocos, onde foi tentar levar por diante a missão falhada pelos sete mártires, teve a sorte de ser apanhado por uma tempestade que atirou o barco para as costas da Sicília e dali chegou a Assis e à comunidade franciscana, levando consigo a doutrina e o saber que adquiriu em São Vicente Fora, Santa Cruz de Coimbra e no Convento dos Olivais. Em Assis bebeu na fonte a vida franciscana.

Visitei Pádua pela simpatia que me liga ao santo português ou luso-italiano. Ali, no largo fronteiro à basílica ou mesmo no interior, não manda Pedro, o que três vezes renegou Cristo, mas o nosso Fernando casamenteiro que crismado foi António, um alfacinha de gema a quem os paduanos ergueram uma monumental basílica, honrando a sua vida e obra e espalhando o seu nome por todo o mundo cristão.

Como um santo é um homem, Pádua é também uma cidade dos homens, pouco mais antiga que a sua universidade (1222), das primeiras fundadas na Europa e no Mundo. Ruas antigas, novas avenidas, belas praças, airosa e de vistas largas que, para além de um belo jardim botânico, tem entre muros a famosa Capela Scrovegni, com um interior pintado por Giotto. Apesar desta belíssima obra de arte que alguns comparam à Capela Sistina do Vaticano, a cidade é mais conhecida pela presença de Santo António, visitado por milhares de fiéis. Ao fim do dia, regressei a Veneza no comboio da tarde, desembarquei em Stª Lúcia e, depois da ponte de Rialto, alcancei o Ca Fenice onde assentei arraiais de cama e pequeno almoço por uma semana, e um passe de transportes marítimos para correr a cidade.

Hoje, ao deslizar pelas fotografias de há quinze anos, já em suporte digital, olhando as pombas que me poisaram nos ombros e me comeram nas mãos na Praça de São Marcos, senti saudades do tempo, não propriamente do interregno dos dias e das horas, mas do momento e do espaço fixado na memória. Puxei um fio como se nada existisse entre uma ponta e a outra e, vendo-me sentado de modo fotográfico nas mesas dos cafés que continuam a preencher o centro cívico da cidade, resolvi voltar à realidade de então nos dias de hoje. Voltar a São Marcos e misturar-me incógnito entre a multidão que ocupa as mesas, que entram na catedral de São Marcos, ou juntar-me aos basbaques de mundo inteiro que, do lado de fora do templo, admiram os frescos de cores vivas e escutam de várias partes do globo as mais diversas línguas. Outras gentes, outras pombas, outros aparelhos para fotografar, porém o mesmo mar da laguna, o mesmo odor, o mesmo calmo ambiente.

Veneza é a mais atraente cidade da Europa e a mais artística. É por si só um mundo, um complexo de belezas exóticas, cheia de romance e originalidade, acolhedora nos seus canais, ruelas, pontes, palácios, varandas, esplanadas, praças e S. Marcos. Veneza é uma cidade espantosa, mau grado as mudanças ambientais que preocupam o mundo serem uma séria ameaça à cidade e ao seu património. Uma cidade que sobreviveu à batalha de Lepanto pode ainda sobreviver às ameaças do tempo. Irão estes tesouros de dois mundos apagar-se do seio da civilização e tornar-se fosseis dum futuro longínquo? Ou encontrará o mundo soluções que salvaguardem o mais rico património da evolução humana?

Tenho saudades de Veneza e a época de Natal é uma boa altura para revisitar a urbe. Vou comprar com antecedência um bilhete de ida e volta no leilão do “frecciarossa” da Trenitália, reservar um quarto no Cá Fenice, depois da Ponte de Rialto e passar um fim de semana no coração do Véneto. E tomar um café matinal na Praça de São Marcos.

Luso, Outubro, 2019