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A Caverna


tags: Mauro Tomaz Categorias: Opinião quarta, 13 novembro 2019

Uma caverna, uma fogueira, uns símbolos, umas sombras desses mesmos símbolos, um grupo de homens prostrados por trás de um muro a contemplar essas mesmas sombras e a sequência do percurso de um desses homens que, entretanto, saiu da caverna e admira com espanto um mundo exterior de cores e de natureza que nunca tinha vislumbrado até então. A imagem é pictórica e, quando observada com cuidado e atenção, permite-nos chegar à natureza da reflexão que ali está simbolicamente implícita, assim se encadeiem os raciocínios no sentido de dar uma sequência lógica à respectiva interpretação. A famosa Alegoria da Caverna, provavelmente o texto filosófico mais estudado de sempre, convém ser recordada de vez em quando, para evitar que o seu precioso conteúdo pedagógico se perca ou vá esquecendo com o tempo. As palavras e todo o manancial icónico carregam consigo a inspiração necessária para nos permitirmos a tudo poder questionar... e isso é gerador de um potencial quase inesgotável, em todas as frentes.

Muito resumidamente, a linguagem mítica empregada por Platão, o autor do texto, remete-nos para a divisão do mundo em duas realidades distintas – a sensível e a inteligível. A distinção entre ambas as realidades assenta sobretudo em razões meramente perceptivas. A realidade sensível é a que captamos por via dos sentidos, e por norma transporta-nos para um mundo de imperfeição. A outra realidade, a inteligível, é basicamente o mundo das ideias, o da busca pela razão, a interminável demanda por toda a verdade possível para o homem. Na imagem da Alegoria que podemos interiormente projectar é possível observar um grupo de homens cuja única realidade que conheciam até então era a que lhes era proporcionada pelas sombras que vislumbravam num mundo de escuridão quase absoluta. Certo dia, um desses homens consegue virar-se para o lado de fora da caverna e, de imediato, fica afectado por uma cegueira temporária, e também ela simbólica, quando olha de frente a luz da fogueira pela primeira vez. Seguidamente, consegue mesmo escapar da caverna, e quando se depara, espantado, com um maravilhoso novo mundo de cor, de luz e de natureza, regressa entusiasmado para contar a descoberta aos antigos companheiros. Estes, resignados em absoluto à realidade a que sempre estiveram vetados, reagem mal à possibilidade sequer de existência de um outro mundo que não somente aquele que conheciam, sendo que por esse motivo resolvem mesmo matar o mensageiro da nova esperança. Sem esquecer nunca o simbolismo sempre presente na intriga que nos é dada a conhecer, a Alegoria da Caverna remete-nos sobretudo para um estado de permanente interrogação em torno de verdades que consideramos absolutas, mas que muitas vezes não o são. A percepção de um indivíduo é tremendamente determinante e o meio em que nos desenvolvemos exerce uma influência brutal no desenvolvimento pessoal e social de cada um de nós, pelo que os ensinamentos da Alegoria são diariamente oportunos, dado que se revelam como um instrumento muito importante de promoção da interrogação e de um contínuo questionamento sobre praticamente tudo o que nos rodeia.

Apesar do hábito e da rotina muitas vezes fazerem com que inconscientemente configuremos e estabeleçamos os nossos próprios dogmas, sejam eles de que natureza for, é de grande relevo termos a capacidade de os conseguir continuar a interrogar, não os assumindo nunca como verdades absolutas e inamovíveis. Esta é uma análise aparentemente simples, extraordinariamente sensível e muito pessoal. Muito interior. Hoje e sempre, recordo-vos o potencial inesgotável da Alegoria, até pela sua transversalidade absoluta. O recurso à memória da imagem icónica da Caverna é quase sempre edificante e muito útil.

 

Boas reflexões a todos!