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Desassossego


tags: Mauro Tomaz Categorias: Opinião quarta, 11 dezembro 2019

No passado dia 30 de Novembro, marcaram-se 84 anos desde o desaparecimento de um vulto incontornável da literatura portuguesa e universal: Fernando Pessoa. Apesar da curta duração da sua passagem, foi tradutor e correspondente comercial, empresário, editor, crítico literário, activista político, jornalista, inventor e publicitário, tudo isto enquanto produzia a sua inigualável obra literária. Uma pouco regrada vida de abusos vários conduziu-o à morte em 1935, após ser internado com uma cirrose hepática, quando uma grande parte de todo o seu espólio se encontrava ainda por editar. Hoje, recordo e homenageio aquele que um dia me desassossegou, para nunca mais deixar de desassossegar.

Fernando António Nogueira foi sempre muito mais do que uma simples pessoa. A aparente infinita sensibilidade que parecia caracterizá-lo transportou-o para patamares que ultrapassam a mera existência e vivência terrenas, tamanha era a sua questionação e entendimento próprio da vida, e das respectivas agruras. O seu tumultuoso percurso é chorado nas prosas e nos poemas de um escritor que explorou como ninguém os domínios da dor, da desilusão, da precariedade, da limitação, da tristeza e do tédio, sob múltiplos prismas. Um pequeno e pouco saudável homem com uma alma do tamanho não de um mundo apenas, mas de vários, todos eles diferentes e ao mesmo tempo diferentemente fascinantes, mas que em conjunto compõem um universo uno… o incomparável universo pessoano. O desdobramento de personalidade é talvez o seu traço mais vincadamente distintivo, e a prova primeira da sua imensidão intelectual. A tentativa de olhar o mundo de múltiplas formas levou-o a conceber alter-egos que nele tiveram a sua própria presença, com todo o efeito, não apenas na sua obra, mas também na sua vida, cujas recorrentes “viagens” o imergiam num desconcerto único, demasiadamente lúcido e ao mesmo tempo muito pouco sóbrio. Pessoa fragmentava-se por necessidade, por no fundo lhe ser impossível encontrar a sua própria identidade. As palavras que por si foram escritas atingem uma dimensão difícil de quantificar, pela capacidade única que têm de “mexer” com quem as lê. A verdade é que muitas vezes transportamos as reflexões, os estados de espírito e as sucessivas divagações para as nossas existências, e acabamos por dar connosco a sentir e a pensar a nossa própria identificação com a inquietude sempre presente no autor dos textos que nos “abanam”.

Sofrido como muitos, Pessoa retratava a dor como poucos, embargado numa celebração negativa do mundo e da vida… sempre nostálgico, sempre céptico. Nunca satisfeito. A monstruosa solidão que o habitava acentuou-lhe ainda mais o tédio e a desilusão, levando-o ao cúmulo de assumir uma total ausência de impulsos afectivos, como que já não esperando nada de nada nem ninguém, afundado no mais preenchido vazio. Pessoa caracterizava-se por um idealismo ilusório pouco sustentado na realidade da sua vida, pelo que se refugiava no sonho e no sono para se insensibilizar do mal, da tormenta. Quem tudo questiona vê com toda a certeza mais além, mas tende a ser e a estar menos realizado com a consciência da incerteza em relação a tudo o que não consegue descortinar. Todos nos sentimos mais frágeis e sensíveis em determinados momentos da nossa vivência, fruto das circunstâncias inesperadas em que a mesma é fértil, e que nos levam a um processo de amadurecimento por vezes forçado e pouco agradável, mas que é necessário. Nada nos faz crescer tanto como a dor, que em boa verdade nos vai fazendo mais fortes, apesar do “lugar-comum” da afirmação. O desassossego alimenta-nos a alma. Obrigado, Pessoa. A ti devo essa lição.

“Tudo que se passa no onde vivemos é em nós que se passa. Tudo que cessa no que vemos é em nós que cessa.”