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279-OS NÓS DO TRANSPORTE FERROVIÀRIO


tags: Ferraz da Silva Categorias: Opinião quarta, 11 dezembro 2019

Quando, em 1999, o Alfa Pendular iniciou as suas viagens entre Lisboa e Porto, prometia-se que atingiria a sua velocidade máxima em meia dúzia de anos. Fenómeno que estava dependente da atualização da via, uma estrutura velha a precisar não só de manutenção, mas de modernização em termos técnicos, de robustez e de segurança e integração na rede europeia. Iniciado o processo, ele ficou-se por Lisboa, pela gare do Oriente e o resto da via foi andando a passo de caracol e, até hoje, o comboio nunca conseguiu fazer o percurso dentro das duas horas e meia que se previa fazer. Entre a panóplia de obras imaginadas, incluía-se o nó ferroviário da saída europeia da Beira Alta pela estação da Pampilhosa, coisa que acabou por não cair do céu como se julgava e se ficou por um pequeno nó na sede do distrito, em Aveiro, para dar acesso à zona portuária.

Portugal parou, pois as suas intenções não passaram a projetos, enquanto a vizinha Espanha e a Europa continuaram e continuam no caminho de melhorar e construir estruturas novas com base nas políticas e utilizando fundos europeus, como é o caso da ligação Lyon-Turim com um túnel sob os Alpes em fase de controversa construção, por motivos ambientais. O mesmo com a atualização continua do material rolante em termos de conforto, velocidade e segurança. Uma Europa respeitadora do ambiente tem a sua base no transporte ferroviário, quer de pessoas quer de mercadorias. E aposta.

Entretanto, em termos legislativos, definiu-se que todos os países da União terão de abrir o transporte ferroviário de alta velocidade à concorrência e, nesta matéria, entram os gigantes da ferrovia, a SNCF francesa, a Deutsche Bhan alemã, a espanhola Renfe ou as italianas Ítalo e SF/Trenitália.

O mundo continuou, andou para a frente sem esperar por ninguém.

A Espanha, a modernizar o transporte ferroviário para suportar as exigências de novas gerações, vai transformando a bitola e entrega à Trinitária e ao seu Frecciarossa 1000, o comboio mais veloz da Europa, a exploração dos seus troços principais, o Madrid-Barcelona com as suas 32 ligações diárias, dezasseis para cada lado, o Madrid-Málaga-Sevilha, com oito ligações, o Madrid-Valência, enquanto no Reino Unido o mesmo operador vai explorar o troço Londres-Edimburgo.

Nesta rede comum europeia em criação e crescimento, onde está Portugal, o único país que meteu a bitola da Europa na gaveta do esquecimento e aposta no costumado atraso estrutural que nos acompanha sempre? Onde está o país que remenda e torna a remendar e não tem ideias nem capacidade para acertar com a via certa do progresso e do futuro e alimenta disparates de ministros e secretários de estado de ignorância e política primária?

Um país que deveria aproveitar estas oportunidades para modernizar e se industrializar ao mesmo tempo, criando empregos e conhecimento, o que faz?

Põe-se uma moderna locomotiva á frente do comboio, mas não temos linhas nem carruagens para poder andar. Tal como os banqueiros que vandalizam os bancos e não pagam prejuízos, somos nós, os inocentes que liquidamos os roubos. Tal qual como com os corruptos que andam na via pública e ninguém lhes põe o olho. Nesta sociedade permissiva, corrupta, opaca, traficante, incapaz, burocrata, onde não há ninguém que suje o fato-macaco, onde se pode chegar? Um país de doutores de mula ruça, como diz um amigo, que futuro terá para oferecer a todos?

Este é o sítio onde vivemos, que nos arrasa com impostos, que nos tira a camisa e nos dá para viver seiscentos reis de esperança mensal. Este é o país que, tendo das melhores mãos para trabalhar, tem as piores cabeças para pensar. O país que faz leis transparentes para o seu cidadão, e leis camufladas, secretas, feitas à porta fechada, para as classes dominantes do poder. Cantámos uma revolução, cantámos um sonho, mas criamos um reinado e da democracia aberta nasceu uma antidemocracia mascarada.

A locomotiva, que tinha combustível de intenções, morreu nos carris, por falta de óleo e lubrificação. Os engulhos foram muitos, os parafusos poucos e o Portugal que vai, vai a caminho dos cem anos de atraso. O costume. Uma Europa mais longe, futebol e fado, festas e televisões com liberdade pirosa. Pretende-se fazer um arraial, não um país liberto com cidadãos conscientes. Um reino, não a república. O servilismo, não a crítica construtiva.

Dizem que é populismo e o populismo é eles que o constroem. Os meninos de leite dos partidos políticos na busca dos seus tachos e favores, espantaram os melhores, os mais sérios, os mais competentes. Mataram a esperança e a motivação, mataram Abril.

Dia a dia, pedra a pedra, sonho a sonho! Se não se mudar de ideias, sem objectivos estratégicos claramente definidos, sem conhecimento e luta, sem motivações fortes e autênticas, num mundo globalizado não se vai longe e um país de remendos não pode sair da cepa torta. Os remendos servem a poucos, não a todos e o círculo vicioso do desconhecimento, da cultura de cuspo, da inconsciência geral, duma sociedade acrítica e abúlica, de analfabetismo atávico, delapida o pouco por nada.

Ao cidadão urge cultivar a consciência de si próprio e do mundo que o rodeia, numa sociedade humana cada vez mais complexa e exigente. Fora das mudanças em curso e de saber o que se quer, os portugueses estão como na história dos dragões televisivos que ouvem, ouvem, ouvem, para dizer: “I’m out!”. Estar fora é perder todos os comboios do tempo e continuar no absurdo de um recoveiro qualquer, sem bitolas, nem horários. E cada vez mais longe da Europa do cidadão. E da cidadania! Ou de uma vida melhor!

Luso, Novembro,2019