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O Médico e Amigo de Mortágua


tags: Mauro Tomaz Categorias: Opinião quarta, 22 janeiro 2020

Apresto-me no corrente exercício a recordar a gloriosa passagem de um Mortaguense notável, cuja memória e bom nome estão hoje gravados para a eternidade num monumento que lhe foi erigido ao lado da Câmara Municipal de Mortágua, e onde está muito simplesmente inscrito “Dr. José Assis e Santos – Médico e Amigo”. Nascido na bonita aldeia de Vale de Remígio, por lá começou a sua vida escolar como aluno de seu pai, o professor Joaquim dos Santos, uma figura determinante na definição da sua personalidade. De lá seguiu para o Colégio da Mealhada, onde se começou a destacar e onde inclusivamente deu aulas, para de seguida e dessa forma conseguir financiar as despesas da faculdade onde se iria formar em Medicina, com alta classificação. Podia ter aí leccionado também, mas optou por declinar o convite, preferindo dedicar-se de corpo e alma à profissão que resolveu abraçar por influência impositiva do progenitor, uma vez que a sua verdadeira vocação era o ensino, na mesma medida que a astronomia era a sua paixão. Iniciou em Sazes, passou por Espinho e finalmente instalou-se em Mortágua, onde exerceu as funções então denominadas como Sub-Delegado de Saúde. A dedicação que empregava aos seus doentes era total, pois não deixava nunca de atender qualquer caso, muitas das vezes em prejuízo próprio ou com grande sacrifício pessoal, como atestam as centenas de quilómetros que caminhava por mês, percorrendo montes, vales e aldeias remotas do Concelho, indo sempre dessa forma de encontro a quem dele necessitava. Mais, muitas das vezes levava ele próprio mantimentos e medicamentos aos seus doentes, o que demonstra todo o seu humanitarismo e beneficência, colocando fundamentalmente o foco não em si próprio, mas em quem dele precisava. Coisas que não se vêem nos dias que correm. A forma como consultava os seus pacientes também era bem elucidativa de toda a tenacidade com que aplicava os seus conhecimentos científicos no sentido de debelar as patologias com que ia sendo confrontado, pois demorava imenso tempo com cada pessoa. Toda a análise e posterior diagnóstico eram realizados com imensa atenção ao pormenor e ainda com uma enorme sensibilidade, sem pressas algumas.

 

Para lá das funções de Médico, Assis e Santos destacou-se também como Escritor e Historiador, sendo nesse sentido bem ilustrativas as obras que publicou, debruçadas sobretudo sobre o passado histórico de Mortágua. “O Pelourinho de Mortágua” é a sua primeira obra, onde descreve e interpreta com enorme minúcia os diversos elementos do único monumento do nosso Concelho com relevância nacional, bem como nos dá nota do seu enquadramento histórico, social e político. Uma obra que redigiu de forma intensa e num curto espaço de tempo após solicitação do Presidente da Câmara da altura, António Abreu, no contexto de celebração dos centenários da fundação da nacionalidade e da restauração da independência. 10 anos depois publicou “Mortalácum”, onde materializou o estudo que efectuou sobre a pré-história local, desde o tempo em que Mortágua era uma “terra de lagoas” até ao período de ocupação romana do território. Escreveu ainda “As Primeiras Viagens Oceânicas” e “O Nacionalismo Português na História Contemporânea”, mas para além destas contribuições, Assis e Santos era um poliglota que dedicava muito tempo ao conhecimento de línguas estrangeiras, sendo que falava inglês, francês, alemão, latim, russo… e nos últimos anos ainda estudou grego, o que mostra o grande interesse que tinha pelo estudo das línguas. Outra das suas paixões era a fotografia, com o relevo especial de as máquinas com que fotografava serem totalmente alteradas por ele. Por outro lado, empregou ainda grande parte do seu tempo na construção de um microscópio artesanal que contava, na altura, com a segunda melhor lente do país, segundo constam as memórias. A esse propósito, Assis e Santos convidava com frequência os Mortaguenses mais jovens para fazerem observações no microscópio, algo por eles nunca antes visto, na altura, o que nos demonstra que, além de interessado pelo conhecimento, tinha ainda um imenso gosto em fomentar esse mesmo interesse pelo conhecimento junto das outras pessoas. Note-se que viveu numa época em que a informação não circulava, nem de perto nem de longe, com a fluidez e a imensidão de hoje, o que trazia outra dificuldade e engenho a um processo investigativo do qual nunca abdicou, durante toda a sua existência.

 

O Médico e Amigo de Mortágua era um homem com uma enorme grandeza de alma e que demonstrava com a sua modesta, mas ao mesmo tempo riquíssima vida, cultivar os mais nobres valores, revelando traços de uma personalidade profunda e singularmente altruísta, que ainda hoje é recordada com saudade e com uma incrível admiração por quem com ele privou. Assis e Santos foi simplesmente brilhante em toda a sua dimensão científica e intelectual, além de desarmantemente frugal no trato e na aparência, fruto de uma educação rígida que teve desde o nascimento, e que lhe “modelou o espírito”, segundo palavras do próprio, sendo que é daí que surge a sua feição mais abnegada, ou mesmo servil, até, tal era a sua dedicação praticamente total e de forma desinteressada à causa dos outros. Nos dias que correm, já não há homens como ele.