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“…parece que ninguém nos quer escutar.”


tags: Padre Rodolfo Leite Categorias: Opinião quinta, 24 setembro 2020

Era ainda muito cedo quando bateu à porta da casa paroquial. Ao abrir, reparei logo no seu olhar sofrido, mas ao mesmo tempo, doce e terno.

Começou por se apresentar, pedindo desculpa da hora pouco apropriada para me incomodar.

 

- Sabe, senhor padre, a gente também tem vergonha ao que chegou. Isto de precisarmos é uma grande humilhação…

 

Mandei-o entrar, imediatamente. Ele, com todo o cuidado, colocou a máscara e abriu

as mãos para receber o gel desinfetante que lhe dei. Depois, sem nada lhe dizer, iniciou, sem antes ter respirado fundo:

 

- Tenho setenta e sete anos de idade. Aos quarenta e cinco tive o desgosto de receber a notícia de que era portador de carcinoma renal. A partir daí a minha vida nunca mais foi vida!

 

Reparei no esforço que fazia para não chorar, enquanto falava.

 

- Se até a essa altura tudo corria bem – ganhei muito dinheiro –, depois foi um viver constante de muitas as preocupações, além de lutar contra a doença. A minha mulher começou a trabalhar nas limpezas e as duas filhas, ainda pequenas, eram apoiadas por vizinhos e amigos. Nunca poderei pagar aos meus vizinhos…! Mataram muitas vezes a fome às minhas meninas.

 

Entretanto, o seu rosto carregado, aliviou-se e mostrou um leve sorriso:

 

- Foi muito duro, mas tudo se superou…! Pela competência dos médicos, sobretudo um que era muito humano, e de todo aquele pessoal, trataram-me e correu tudo bem. Já lá vão trinta e dois anos.

 

Respirou fundo e avançou:

 

- Nunca mais fui o mesmo, desde essa época. Mas com ajuda da minha mulher, trabalhando como podia e às vezes sem poder, lá acabámos de criar as meninas e tudo se passou, também com ajuda de Deus.

 

Percebi que falava com gosto, nem podia ser de outra forma, pois era a sua vida. Lá me foi contando sobre o casamento das filhas, o nascimento dos netos e um sem número de outros acontecimentos. Nisto, de novo, com as lágrimas nos olhos, disse-me:

 

- Agora, esta pandemia foi uma desgraça. Nunca tivemos muito, mas conseguimos juntar alguma coisita. Mas, nestes meses, tivemos que levantar tudo para ajudar as filhas. Uma ficou sem trabalhar e o marido a receber menos, com o layoff; a outra não teve sorte no casamento e o que ganhavam nunca chegou para o que gastavam…muito menos agora!

 

Respirou de novo fundo:

 

- Neste momento, já sei o que fazer para as ajudar, sobretudo aos meus netos. Sempre confiei nos amigos, mas olho ao redor e está tudo na mesma situação. Ajude-me, por favor! Não quero que me dê dinheiro, só que me oriente. Que devo fazer, com esta idade, para as ajudar?

 

Senti um aperto, dentro de mim, que dificultou dar uma resposta imediata e eficaz. Mas lá fui tentando abrir algumas perspetivas possíveis e sensatas… sobretudo com a preocupação de não o levar a que se expusesse e se humilhasse…! Ele ouviu com toda a atenção e pareceu-me que foi fixando as indicações que lhe fui dando.

No final, perguntei-lhe se precisava de alimentos. Ele acenou afirmativamente. Lá desci com ele à sede do GASC e entreguei-lhe um pequeno cabaz.

Ao despedir-se, agradeceu, com muita humildade, e ainda me disse:

 

- O melhor tudo foi ter-me ouvido. Até isso este vírus veio provocar. Não sabemos a quem falar porque parece que ninguém nos quer escutar.

 

 

Na missa da tarde, recordei-me daquele homem e de tantos que ele representa. Sim! Hoje, é cada vez maior a multidão daqueles que não só têm necessidades económicas, sociais e sanitárias, mas precisam sobretudo de ser escutados, de dizer as suas vidas e as suas histórias. Que grande tarefa esta de escutar, de acolher e de perceber a vida e a história dos outros. Sem demagogia, sem moralismo, sem sobranceria…, mas no silêncio humilde de quem é capaz de abdicar de todas as teorias e opiniões vazias com que, tantas vezes, intoxicamos a nossa convivência social e nos impedem de escutar os outros.

Já agora, o uso da máscara tapa-nos a boca e toca-nos as orelhas, talvez a ser um sinal de que em pandemia, havemos de escutar mais os outros do que falar para eles.

 

P. Rodolfo Santos Oliveira Leite