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Quaresma: uma oportunidade de amor | Opinião


tags: Padre Rodolfo Leite Categorias: Opinião quinta, 10 março 2022

1. Os católicos começam esta quarta-feira o tempo da Quaresma. Um itinerário de 40 dias, em que são desafiados à conversão, ou melhor, a recuperarem a melhor versão de si mesmos, o mais belo e bondoso que neles existe e a colocarem fora tudo aquilo que impede que essa bondade e beleza do seu ser se manifeste nas suas vidas. Desta forma, poderão viver e experimentar o mistério central da sua fé, a Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus Cristo, que dá sentido à vida e a torna definitivamente feliz.

Neste itinerário de conversão, é deveras importante saber escutar de forma atenta e de mais de perto as vozes que ressoam dentro de nós e dos nossos irmãos. Escutar, em profundidade, todas as vozes. Aliás, todos temos necessidade de aprender a escutar de maneira empática, interpelados na primeira pessoa de cada vez que um irmão se abre connosco. A escuta transforma por isso, primeiro que tudo, aquele que escuta, pondo de lado o risco da arrogância e da autorreferencialidade. A escuta não é uma simples técnica para tornar a comunicação mais eficaz; a escuta é ela própria, relação, porque transmite ao outro uma mensagem balsâmica: «Tu, para mim, és importante, mereces o meu tempo e a minha atenção, és portadora de experiências e ideias que me provocam e me ajudam a crescer».

2. Conversão exige, também, que assumamos a realidade do que somos e existe à nossa volta. A ancoragem à realidade histórica é uma característica fundamental da fé cristã. Não podemos ceder à tentação de um passado idealizado ou de uma expetativa do futuro desde a sacada da janela. Antes, é urgente a obediência ao presente, sem se deixar vencer pelo medo que paralisa, pelos lamentos ou pelas ilusões. A atitude do cristão é a da perseverança. Esta perseverança é o comportamento quotidiano do cristão que sustém o peso da história, sobretudo em Quaresma, de forma pessoal e comunitária.

Nos primeiros meses da pandemia assistimos a um sobressalto de humanidade, que favoreceu a caridade e a fraternidade. Depois este impulso inicial foi aos poucos esmorecendo, dando lugar ao cansaço, à desconfiança, ao fatalismo, ao fechamento em si próprio, à culpabilização do outro e ao descompromisso. Mas a fé não é uma varinha mágica. Quando as soluções para os problemas requerem percursos longos, é preciso paciência, a paciência cristã, que foge de atalhos simplistas e permite permanecer sólido no compromisso pelo bem de todos, e não para uma vantagem egoísta ou de fação. A partilha, como serviço e testemunho, deve ser um modo de provocar esta atitude de perseverança que havemos de viver. Só assim iremos reconstruir aquilo que desmoronou, em nós e à nossa volta.

Por isso, devemos reapropriar-nos do tempo presente com paciência e permanecer na adesão à realidade. Sentirmos que é urgente a tarefa de nos educarmos para a verdade, contribuindo para colmatar a diferença entre realidade e falsa perceção da realidade. Nesta “separação” entre a realidade e a sua perceção aninha-se o gérmen da ignorância, do medo e da intolerância. Mas é esta a realidade que nos é dada e que somos chamados a reconstruir, a servir e onde devemos testemunhar, com perseverança.

3. Permanecer fiéis à realidade do tempo presente não equivale, no entanto, a ficar pela superfície dos factos nem a legitimar cada situação em curso. Trata-se, antes, de vislumbrar a ação de Deus, que torna cada época um «tempo oportuno». Para o cristão, este não é simplesmente o tempo ainda marcado pelas restrições devidas à pandemia: é, antes, um tempo de e para Deus, um tempo de plenitude, porque contém o p o r t u n i d a d e s de amor criativo que em nenhuma outra época histórica se tinham apresentado. Talvez não sejamos ainda suficientemente livres de coração para reconhecer estas oportunidades de amor, porque travados pelo medo ou condicionados por expetativas irrealistas.

Já agora, que ação em nós cristãos e, porque não, em todos, torne possível reconhecer este nosso tempo, como oportunidade. Isto, indo sempre para além dos meros factos que acontecem no nosso presente, mas lendo todos e tudo à luz do Amor que vence a morte e faz imperar a Vida. Que esta Quaresma, na realidade em que nos encontramos e com simplicidade, seja para os cristãos e todos os outros, uma oportunidade de amor.

Padre Rodolfo Leite