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Perspetiva - Maldito sejas | Opinião


tags: Mauro Tomaz Categorias: Opinião quinta, 24 março 2022

Em pleno século XXI, ano 2022, chegou-nos friamente à mesa a evidência básica de que pouco ou nada evoluímos nas mentalidades, enquanto sociedade global, de há décadas a esta parte… e o regresso da guerra à Europa nos dias que correm é a prova provada da falência das instituições políticas mundiais, ou pelo menos uma fortíssima demonstração da sua incomensurável fragilidade. Quando julgávamos que já não haveria conflito algum que não pudesse ser sanado pela via do mais civilizado diálogo entre blocos, estados e pessoas concretas, eis que os russos nos mostram com bombardeamentos à antiga que as diplomacias modernas de pouco ou nada valem quando se trata de mostrar quem é que manda. O capital e o domínio de monopólios são obviamente o centro dos interesses a instalar, mas parece haver aqui um saudosismo imperialista muito vincado em Putin e na sua ambição nunca escondida de inscrever o seu nome na galeria do olimpo dos czares, deixando-nos uma certeza apenas: o regresso a um passado bárbaro de violência, agressão e genocídio indiscriminado já não deixa ninguém dormir descansado neste planeta. Até porque a escalada militar, económica e propagandística parece não ter um fim à vista.

Durante os dias, em que se vão alternando os afazeres profissionais e domésticos, tenho-me conseguido de certa forma abstrair da dureza destes tempos, mas a hora das refeições da noite e as imediatamente seguintes têm sido implacáveis para quem gosta de viver uma vida descansada sem se conseguir alhear deste agonizante mundo que nos rodeia. Não há tranquilidade e consciência moral que resistam a uma guerra que nos chega de todas as maneiras, pelos mais variados canais de informação e de comunicação, e que é capaz de transtornar e de fazer dormir mal o mais insensível dos cidadãos. A brutalidade que se julgava perdida para sempre e enterrada em tempos de muito má memória é-nos agora servida em fotografias, vídeos e reportagens realizadas ao minuto, em directo e dentro do perímetro assinalado a linhas vermelhas. À data que escrevo, e com pouco mais de duas semanas de conflito passadas, os números apresentados por um lado e pelo outro (obviamente maquilhados e empolados pelas respectivas máquinas de uma propaganda cínica que vai sendo orquestrada à medida dos interesses estratégicos de ambas as partes) mostram-nos que o combate no terreno é atroz, selvagem e de alta intensidade. À data que escrevo, antevê-se por horas ou por poucos dias uma batalha sangrenta em Kiev que especialistas em conflitos militares preveem histórica, dado o elevado contingente de infantaria prestes a irromper pelas ruas da capital guarnecidas por uma feroz resistência ucraniana que se tem revelado surpreendentemente organizada, equipada e com um orgulho patriótico capaz de fazer corar de vergonha o próprio ditador de leste, que muito gostaria de a poder verificar do seu lado, quando o que se tem visto nas lentes das câmaras é o espancamento e a detenção de milhares e milhares de russos, diariamente, censurados e enclausurados pela sua oposição ao regime, bastando o simples proferimento das palavras “guerra” e “invasão” para condenar homens, mulheres e, eu diria mesmo que inacreditavelmente, idosos de 90 anos para cima e até crianças que empunhavam cartazes de insatisfação. Há vídeos incríveis que o testemunham. As imagens captadas e que ficarão para a história não perdoam, e ao mesmo tempo que ridicularizam a autodenominada missão de “paz” da investida russa, faz-nos também pensar um pouco sobre a própria consistência unitária e identitária da civilização ocidental, nomeadamente da Europa e dos Estados Unidos. À data que escrevo, tudo pode ainda vir a acontecer, sabendo-se da desmedida e descomunal obstinação do pequeno tirano, que nunca desistiu de objectivo militar algum, por mais pérfido que tivesse sido, como prova o seu extenso e profundamente desumano currículo. Réptil de rara e inusitada frieza, já rebentou completamente com grandes cidades inteiras como Grozny e Aleppo, bombardeando pesadamente tudo e mais alguma coisa até conseguir espantar o maior número possível de civis que depois se tornam refugiados (saem de uma guerra para se meter numa outra), irrompendo de seguida por via terrestre com infantaria à bruta para eliminar todos os resquícios humanos que ainda possam resistir. O que se tem passado na Ucrânia demonstranos a certeza de que também ali a estratégia é precisamente essa.

Onde isto tudo irá acabar é algo que ninguém neste mundo sabe… tal como ninguém neste mundo se esquece de que a segunda grande guerra, o conflito mais letal da história da humanidade, terminou há menos de oitenta anos. Uma ninharia de tempo, à escala. Na altura, foi global e consensualmente afirmado que “nunca mais”…

Sou militante anti pena de morte, mas a minha consciência diz-me que há situações e situações. Quem ataca selvaticamente bairros residenciais e hospitais merece um desfecho trágico. Quem bombardeia indiscriminadamente corredores humanitários e maternidades não merece viver. Quem assassina cruelmente milhares e milhares de inocentes, entre mulheres e as mais cândidas, puras e inconspurcadas crianças, merece o pior de todos os epílogos, à semelhança de um qualquer Mussolini ou Khadafy. Aliás, a própria morte do ditador, neste caso, até poderia ser a solução mais rápida e eficaz para evitar males muitíssimo maiores, fazendo ruir o respectivo desígnio russo por dentro. É um desejo que aqui assumo, apesar de o considerar pouco provável.

Maldito sejas, Putin. Espero que apodreças no inferno. 

Mauro José Tomaz