Diretor: 
João Pega
Periodicidade: 
Diária

A Paz nasce de um coração convertido ao amor… | Opinião


segunda, 28 março 2022

1. É uma convicção pessoal e penso que é, também, a intuição de muitas pessoas que, sensata e profundamente, pensam a vida e o viver, a partir da verdade, que a guerra tem a sua origem no coração do ser humano. Compreenda-se, neste contexto, «coração» no sentido bíblico, como o fundamento da pessoa humana, das suas relações com o bem, com os outros e com Deus. Não se trata somente da sua afetividade; mas também da sua consciência, das suas convicções, do sistema de pensamento ao qual se sente ligada e, ainda, das paixões que determinam os seus interesses. Aliás, só pelo «coração» é que o ser humano pode viver segundo os valores absolutos do bem, da justiça, da fraternidade, da paz e do amor.

Contudo, quando se dá um desregramento do coração, dá-se também o desregramento da consciência, levando a que esta chame «bem» ao «mal» que pretende escolher, quer nível dos interesses materiais quer ao desejo de poder. Por isso, há sempre responsabilidade da consciência individual na preparação, desencadeamento ou extensão de um conflito; e mesmo que a responsabilidade seja partilhada por um grupo, ou uma nação, não altera em nada este princípio.

2. Entretanto, a consciência está, muitas vezes, dominada, para não dizer escravizada, por «modas» ou ideologias, que são também elas criadas pelo ser humano, mas que se tornam horrivelmente desumanizadoras. A adesão incondicional a estas ideologias torna-se até uma espécie de «idolatria» do poder, da força, da riqueza, enfim, uma forma de escravatura que tira a liberdade a todos, incluindo os próprios que as seguem!

Além disso, há as «paixões» que também desregram o coração humano e o inclinam para o conflito, a violência e a guerra. Sem se aperceber, a pessoa pode deixar-se arrastar para a autossuficiência que gera ódio; ou também para a inveja, para a cobiça dos bens; ou ainda, de uma maneira geral, para a ambição do poder, para o orgulho e para o desejo de estender o próprio «domínio» sobre outros e que leva a desprezá-los.

Na verdade, a violência e a guerra provém de um coração desregrado, da cegueira do seu espírito humano e da escravidão a que se sujeita e, pateticamente, de que não se quer libertar. Sim, a guerra nasce no coração humano! Quando a pessoa se torna incapaz de discernir o bem e o mal e não se guia pelos valores que dão dignidade à vida, acaba por «ficar à deriva», no seu «coração», não conseguindo construir a paz com os que a rodeiam, na base da verdade, com a retidão de espírito e de bondade! A paz será sempre ilusória se não acontecer uma verdadeira transformação do coração humano.

Se o sistema geopolítico e económico atual se demonstra incapaz de garantir a paz, é sinal que o «coração» humano necessita de ser renovado, para renovar, por sua vez, todos os sistemas, as instituições e os métodos. Aliás, a fé cristã tem uma palavra para designar esta mudança fundamental do «coração»: é a palavra «conversão», própria deste Tempo da Quaresma. Esta consiste em reencontrar, por amor, a clarividência e a imparcialidade, com a liberdade de espírito; o sentido da justiça e do respeito pelos outros, mesmo que diferentes; o sentido da equidade, na solidariedade entre todos, ricos e pobres; a confiança mútua e a fraternidade.

3. Por isso, no atual cenário em que vivemos, é urgente e necessário que todos adquiramos uma real liberdade de espírito, para tomarmos consciência de tantas atitudes estéreis do nosso dia-a-dia, do carácter fechado e parcial da nossa forma de estar e pensar dos outros e das coisas, que parte de preconceitos e reduz o bem da outra pessoa e a sua história, a uma categoria em que só conta o seu poder económico, em que se apregoam soluções de «sentido único» e que não fazem caso da verdade profunda da vida de cada um.

É preciso, pois, começar por fazer um verdadeiro exame a tantos dos nossos comportamentos que levam manifestamente a situações dolorosas, que congelam o diálogo e o entendimento, que geram a desconfiança e aumentam a violência e mal-estar, impedindo, verdadeiramente, a paz e a felicidade de todos. É certo que uma tal transformação do coração exige muita coragem, a coragem da humildade e da lucidez, a partir da consciência de cada um. Será utópico esperar que isso aconteça? A impotência e o perigo em que todos nos sentimos a viver impelem-nos a não deixar para mais tarde este retorno à verdade, que é a única coisa que os torna livres e capazes de criar uma vida melhor, porque é de paz.

Por fim, o «coração convertido» é aquele que se deixa guiar pelo amor. Não poderá existir verdadeira paz exterior entre as pessoas, grupos, povos e nações, enquanto o espírito de paz não «dominar» as inteligências e os corações. As inteligências, para reconhecerem e respeitarem a justiça; os corações, para que à justiça se junte ao amor e até para que esta prevaleça sobre a justiça, porque, se é verdade que a paz tem de ser obra da justiça, ela é algo que pertence mais ao amor.

Já agora, nesta Quaresma, como seria importante, para todos, renunciarmos a quaisquer tipos de violência e de mentira, e tornarmo-nos - nas próprias intenções, nos próprios sentimentos e em todo o comportamento - seres mais amorosos e fraternais, que sabem reconhecer a dignidade e as necessidades dos outros, e procurarmos juntos criar um mundo de paz.

Padre Rodolfo Leite