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Manuel Bastos de Matos: Capitão de Abril é recordado com espólio em sua homenagem


tags: 25 de Abril Categorias: Especial sexta, 29 abril 2022

“Discreto”. “Um homem com três temperos e de consenso. Para orar, era brilhante”. “Tinha as suas virtudes, as suas qualidades e os seus defeitos. E para muitos os seus defeitos é que fervia em pouca água e era extremamente frontal.” “Era uma personalidade fora do vulgar”. É assim que Augusto Mamede e Vilela Martins, de Casal Comba, recordam o advogado e antigo militar, Manuel Bastos de Matos, conhecido como o Capitão de Abril, tendo falecido no ano passado aos 73 anos, e que deu voz à Revolução dos Cravos, um momento histórico que marcou o fim da ditadura. Quando eclodiu a Revolução dos Cravos, em 25 de Abril de 1974, estava a cumprir o serviço militar como capitão, em Coimbra, tendo assumido responsabilidades locais nas operações do Movimento das Forças Armadas (MFA) que levaram ao derrube da ditadura fascista. O então oficial miliciano integrou depois a Comissão de Extinção da PIDE-DGS, a polícia política do regime de António Salazar e Marcelo Caetano.

Natural da Murtosa e com um percurso ímpar por Coimbra e afins, foi em Casal Comba que passou grande parte da sua juventude e que conheceu dois dos seus companheiros de vida, Augusto Mamede, presidente do Rancho Folclórico São João e que decidiu prestar uma homenagem com um espólio na sede do rancho, e Vilela Martins, antigo advogado e mais tarde professor. “A minha convivência com ele surgiu porque ele andava por aqui. Havia aqui um barzinho do Mário de Nogueira que também era muito amigo dele e começámos a relacionarmo-nos aí. Tanto que depois ele começou a exercer advocacia e fazia por aí muitos trabalhos. Ele era brilhante.  Depois, como eu estive ligado à primeira Câmara Municipal da Mealhada, como vereador, após o 25 de Abril, Odete Isabel era presidente e muito amiga dele. E daí a nossa relação. Íamos a Murtosa comer caldeiradas e juntávamo-nos muitas vezes no café do Mário a falar do 25 de Abril”, adiantou, realçando que “após o 25 de Abril foi um novo país que apareceu” e recordou esses tempos na Mealhada também. “Foi uma euforia. Porque só quem viveu o 25 de Abril é que pode realmente imaginar o que foi. Foi uma coisa extraordinária. Nós antes não podíamos fazer o que queríamos. Se fossemos para um bailarico estavam polícias presentes e se houvesse alguma coisa levavam as pessoas. Nós não tínhamos liberdade. Depois tivemos um país que podíamos andar para aqui e para acolá, com responsabilidade claro, porque a liberdade também não é o que muita gente pensa. E nós sentíamo-nos bem e começámos a interiorizar o 25 de Abril, nunca esquecendo o que estaria para trás”, contou ao nosso jornal. Augusto Mamede faz questão de realçar a importância de “Tó Bastos”, assim tratado pelos amigos, neste acontecimento: “Teve a sua importância porque a partir do 25 de Abril ele passou a ser um dos oradores deste acontecimento. Onde ele estava era sempre uma luta sobre isso. Mesmo após o 25 de Abril ele estava sempre a recordar este momento. Era a voz e o protagonista deste momento histórico aqui na Mealhada. Primeiro, porque frequentava a Mealhada, segundo, porque apareceu como um Militar de Abril e, depois, apareceu como advogado e era um distinto advogado. Era uma ótima pessoa”, assegurou.

O espólio de Manuel Bastos de Matos, patente na sede do Rancho Folclórico de São João, foi inaugurado na segunda-feira, esta que foi uma homenagem que Augusto Mamede quis prestar ao Capitão de Abril. “Isto está tudo relacionado. Este espólio não se perdeu e foi uma das irmãs que perguntou se eu queria alguma coisa dele porque oferecia. E assim foi. Decidi que ia para o Rancho Folclórico, porque ele também andava muito por aqui. E comecei a ver os quadros, alusivos à data, e achei que tinha importância. Eram peças que tinha em casa dele”, partilhou.

Vilela Martins também quis recordar o amigo de longa data, que muitas vezes se considerava “irmão mais velho”, e partilhou algumas memórias em conversa com o nosso jornal. “Éramos amigos desde os tempos do colégio, eu tinha uns 13 anos e ele 19, por aí. Era um pouco mais velho e na brincadeira dizia que era o meu irmão mais velho. Ele frequentava muito a minha casa”, começou por relatar. “Andámos a estudar na mesma altura, embora ele já estivesse na tropa. Cumpriu o serviço militar obrigatório por causa da crise académica de 1969, porque reprovou nesse ano e, portanto, todos aqueles que estavam com a chamada “espera militar”, foram chamados para a tropa. Lembro-me perfeitamente que tinha 19 anos e ligava pouco às políticas, mas ele falava-me por alto em certas situações. Recordo-me de um episódio que se passou nas vésperas do 25 de Abril. Ele já estava em Coimbra, no quartel general que ficava próximo ao cimo da Praça da República onde se concentravam os estudantes. Na altura eu era caloiro, nós andávamos ambos em direito, mas ele era mais adiantado, embora tivesse suspendido o curso. E um dia na Praça da República ele diz-me assim “vamos aqui conversar um bocado, depois fazemos de conta que nos despedimos, deixas-me ir 50 metros à frente e quado eu estiver a 50 metros de ti, vais atrás de mim que eu quero ver se há um sujeito que vai atrás de mim para ver o que ando a fazer e depois te vou dizer quem é e o que faz”. E assim foi. Quase até ao quartel general percebi que ia alguém atrás dele a seguir-lhe os passos. Esse sujeito, disse-me depois, é um agente da PIDE - Polícia Internacional e de Defesa do Estado. Curiosamente, no dia 26 de abril de 1974, a PIDE ficava quase em frente ao quartel general e estava cheio de carros. Esse sujeito tinha um Volkswagen bege e foi um dos carros incendiado pela manifestação. E aí prova que já tinha algum peso sobre este tema e andava sob vigilância. Quanto à participação dele, é verdade e por superiores que eu conheci, ligados ao 25 de Abril, por exemplo, o General Fabião, que era muito amigo dele, que consideraram que ele foi um dos oficiais que participou no 25 de Abril”, contou.

A opinião de quem partilhou momentos e histórias com a personalidade que tantos marcos deixou, é de que Manuel Bastos de Matos “não fazia alarmismos do que fez ou deixou de fazer a propósito do 25 de Abril. Só os amigos mais íntimos é que sabiam o que realmente fez. Para saberem a ligação dele ao 25 de Abril era preciso tirarem-na do saco para ele de vez em quando falar sobre isso”, expôs Vilela Martins, adiantando que Manuel Bastos de Matos era uma pessoa “fora da caixa” e com uma “grande ligação a Casal Comba pois foi lá que viveu parte da sua infância”. “Dava-se com toda a gente e teve uma educação extremamente severa. Curiosamente, sendo um homem ligado à esquerda, nunca rejeitou o Partido Socialista numa visão moderada. E foi sempre um homem de confiança de todos os comandantes da região militar”, concluiu.