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Temos todos de saber ouvir bem o que Deus nos diz | Opinião


tags: Padre Rodolfo Leite Categorias: Opinião sexta, 06 maio 2022

Naquela manhã, quando cheguei à igreja da Mealhada, fui a última vez que estive com ele. Era habitual encontrá-lo ali, quer nas celebrações, quer durante o dia, em oração. Quando vinha passar umas temporadas com filha, sobretudo depois do falecimento da sua Lidinha, fez em fevereiro passado quatro anos, quase diariamente ia ao cemitério «visitá-la» e depois passava pela igreja para rezar.

Nesse dia, ali estava ele, diante do Sacrário, concentrado, com uma postura corporal de reverência e recolhimento, em oração. Passei por perto, em direção à sacristia, e ele, reparando, disse-me:

- Bom dia, senhor padre Rodolfo!

- Bom dia, senhor Augusto!

- Desculpe, nem o ouvi entrar. Cada vez estou a ouvir pior. A si, ainda o consigo ouvi-lo bem, porque fala alto, mas às outras pessoas é mais difícil percebê-las.

Sorri e sosseguei-o, dizendo-lhe, com certo humor, que, por vezes, até é bom ouvir mal, pois não ficamos incomodados, com alguns disparates que os outros nos dizem. Ele sorriu, simpaticamente, como lhe era característico. Disse-me, então:

- Já fui ao cemitério, visitar a minha Lidinha, e agora estou aqui um pouco, junto de Jesus. A Ele, consigo ouvi-Lo bem. Sabe!? Temos todos de saber ouvir bem o que Deus nos diz, porque Ele pode chamar-nos e nós não darmos por ela. Temos de estar sempre alerta e preparados.

Fiquei encantado com a lucidez da sua afirmação. Gostei sempre de conversar com ele. Admirava a sua paixão por Jesus Cristo, pelo Evangelho, pela Igreja, pelos outros, sobretudo, pelos que mais sofriam. Era mesmo algo de extraordinário a maneira simples, mas profunda e coerente, como vivia a fé. Não era um homem de certezas, mas de convicções. Como que tinha «gravado» no seu coração o sonho do Papa Francisco de uma «Igreja em saída»!

Por isso, possuía um desejo sôfrego, quase incontrolável, de falar de Deus aos outros e dos outros a Deus. Depois, nunca se cansava de rezar nem de verbalizar, com paixão a sua fé. Era, de certeza, uma das razões do seu viver. Ele sabia convictamente que, sem Deus, muito pouco, na vida, vale a pena ou tem sentido, na lógica do amor!

Humanamente, tinha um coração enorme e facilmente nele a todos tinham lugar. Era de trato agradável, educado e elegante, sempre temperado por uma humildade genuína. Também passou por momentos difíceis ao longo da sua vida, até mesmo dolorosos, o maior deles talvez tenha sido o falecimento da sua Lidinha. Lembro-me do funeral dela. Embora a sofrerem - ele, as filhas e os netos -, emanava de todos a luminosa certeza de que Deus e o Seu amor pela humanidade são sempre infinitamente maiores que a dor e a morte.

Entretanto, uns dias antes da Páscoa, o senhor Augusto, estando em Lisboa, a visitar uma das filhas, ficou gravemente doente e teve de ser internado no hospital. Passou a Semana Santa em grande sofrimento e com as esperanças de recuperação a diminuírem. O fim aproxima-se de forma galopante. Na segunda depois da Páscoa, faleceu, ou melhor, passou a viver da Vida Nova do Ressuscitado. Sim, unido a Cristo na Sua Paixão e Morte, com Ele ressuscitou (cf. Rom. 6, 8)!

O seu funeral foi uma celebração intensa, não só pela emoção, mas pela vivência da fé de todos os que nele participámos. A mesma fé em Cristo do qual o senhor Augusto foi «discípulo missionário», ao longo de toda a sua vida. Acredito, firmemente, que apesar da dor e da tristeza da separação humana que nos toca, ele goza, agora, da eternidade do Amor de Deus.

Já agora, que bom seria que nunca perdêssemos a capacidade de ouvir o que Deus nos diz, em cada momento das nossas vidas, para que Ele nos vá revelando os caminhos que havemos de percorrer, apesar das dores e dos sofrimentos, mas que nos levam à verdadeira felicidade. Com efeito, não se trata de um problema de «audição», mas de uma vida rezada de e com o coração. O senhor Augusto testemunhou-o, de forma concreta e simples, de quem vive com e a verdade da fé!

Padre Rodolfo Leite