Diretor: 
João Pega
Periodicidade: 
Diária

O Alzheimer não faz esquecer o que está no coração | Opinião


tags: Padre Rodolfo Leite Categorias: Opinião segunda, 23 maio 2022

O Alzheimer não faz esquecer o que está no coração.

Fui visitar o senhor Álvaro e a D. Isabel, na Pampilhosa. A idade de ambos e a doença dela, não permitem que saiam para a rua. Recebeu-me com sorriso delicado e uma candura deliciosa. Conforme fui entrando, na sua casa, foime dizendo que, há muito, me queria conhecer, mas não podia, pela situação dele, sobretudo, da esposa. Cheguei à sala e ali estava ela, sentada num confortável cadeirão. Fiquei encantado com o seu sorriso, belo e doce, embora me apercebesse logo do estado avançado da sua doença.

A D. Isabel sofre de Alzheimer, essa terrível doença que provoca na pessoa a perda de memória e da consciência de si mesma; a incapacidade de reconhecer os familiares; a dificuldade em realizar as meras tarefas simples da própria autonomia; a ausência da noção dos espaços e das coisas. Enfim, uma doença degenerativa que é terrivelmente dolorosa para quem a sofre e para os que com ela vivemA D. Isabel sofre de Alzheimer, essa terrível doença que provoca na pessoa a perda de memória e da consciência de si mesma; a incapacidade de reconhecer os familiares; a dificuldade em realizar as meras tarefas simples da própria autonomia; a ausência da noção dos espaços e das coisas. Enfim, uma doença degenerativa que é terrivelmente dolorosa para quem a sofre e para os que com ela vivem.

- Já não me conhece. Diz que sou o pai dela, outras vezes, diz que sou o irmão...

Ao contar-me isto, reparei na tristeza do seu olhar. Não consigo imaginar que, depois de 58 anos de casamento, a dureza e a dor de não ser reconhecido a quem sempre se amou e por quem foi amado. Entretanto, com algum «atrevimento», perguntei-lhe, a ela, apontando para o marido:

- Quem é este?

Ela, depois de uns breves momentos de silêncio, respondeu-me:

- Quem havia de ser? É o meu homem!

A sala como que ficou pequena para a imensa alegria que brotava do coração do senhor Álvaro e se espelhava no seu rosto. Nem conseguia falar, com a emoção e orgulho, pela resposta que tinha ouvido. Só dizia:

- Hoje, ela reconheceu-me!

Nisto, reparei que os minutos estavam a passar e havia um funeral para fazer. Despedi-me, prometendo que voltaria a fazer uma nova visita, um dia destes.

Com o levantamento das restrições que a pandemia obrigou, tenho intensificado estas visitas aos doentes, aos idosos que já pouco saem de casa e aos mais pobres, das várias comunidades da Unidade Pastoral da Mealhada. Claro, sempre com os cuidados necessários que a situação ainda exige. Juntamente com as celebrações mensais, em todas as instituições sociais do concelho, estas visitas são uma missão que muito gosto e saboreio, onde me vou sentindo envolvido por esse mistério de presentear aqueles, a quem vou ao encontro, com «algo» que não é meu, mas superior a mim.

Uma experiência que supera o simples plano humano da solidariedade e a mera beneficência. São momentos em que me sinto pequeno, perante o que lhes posso transmitir e a gradeza do que neles contemplo, em cada visita. Com efeito, como São Paulo escrevia, aos cristãos de Coríntio “temos esse tesouro em vasos de barro, para mostrar que este poder que a tudo excede, provém de Deus, e não de nós”! Naquela tarde, experimentei, mais uma vez e intensamente, a minha pequenez perante a grandeza do que contemplei. Sim! Aquela senhora, como tantos outros, com a idade e a doença, vão perdendo as capacidades e a noção das coisas e das pessoas! Mas, tenho uma profunda convicção que nenhuma realidade poderá apagar o que o amor grava no coração humano. Há uma pessoa amiga que me costuma dizer que, com a idade, vai ficar biruta e depois dirá todos os segredos e será uma desgraça. Segundo ela, o que lhe valerá é que ninguém a levará a sério. Acho-lhe muita graça quando mo diz, mas fico sempre a pensar que o mais importante, belo e significativo da vida, quando tudo, em nós vai começando a falhar, até a mente, é aquilo que o amor gravou no nosso coração. Isso nunca desaparecerá.

Já agora, a resposta da D. Isabel fez-me recordar o escritor brasileiro Vinicius de Moraes.

“Porque foste, na vida,

a última esperança,

encontrar-te me fez criança,

porque já eras meu,

sem eu saber sequer,

porque és o meu homem

e eu tua mulher.

Porque tu me chegaste,

sem me dizer que vinhas

e tuas mãos foram minhas, com calma,

porque foste em minh’alma

como um amanhecer,

porque foste o que tinha de ser!

Padre Rodolfo Leite