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Sobre uma nova moda: a expressão ''trabalho digno'' | Opinião


tags: Maria Alegria Marques Categorias: Opinião segunda, 23 maio 2022

É sabido que todos os tempos têm as suas modas e que estas invadem todos os aspectos da vida, dos mais comuns, aos mais inusitados. Porém, na contemporaneidade, as modas divulgam-se mais rapidamente, pela abundância e facilidade dos meios de comunicação social.

São tantos os exemplos, que nem é necessário preocupar-nos com eles. Mas, hoje, interessa-nos uma moda vocabular que nos aflige. Referimo-nos a uma certa expressão que tem vindo a ser imposta entre nós, veiculada sobretudo pela comunicação social: “trabalho digno”.

A palavra trabalho não tem um sentido inequívoco, nem foi usada, desde sempre, com o mesmo sentido. Se é consensual que tem a sua origem num instrumento, chamado tripalium, em latim, feito de três paus aguçados, algumas vezes ainda munidos de pontas de ferro, já não acontece o mesmo relativamente ao fim a que tal objecto se destinava. Para uns, seria um aparelho no qual os agricultores bateriam as espigas do cereal, trigo ou milho, para as rasgar. Para outros, tratar-se-ia, antes, de um instrumento de tortura, proveniente do mundo romano, destinado a supliciar os escravos apanhados em transgressão. Fosse como fosse, a palavra trabalhador seria, sempre, o operador de tal objecto. Pelo facto de a palavra tripalium significar o tal objecto de tortura, há quem defenda que o trabalho é uma maldição, uma punição, um crime, até. Como é sabido, esta mesma ideia é muito mais antiga, desde logo no primeiro livro da Bíblia, o Génesis, no qual se pode ler a conhecida passagem “ganharás o pão com o suor do teu rosto”, frase com a qual Deus condenou Adão e Eva pela sua desobediência. Ao mesmo tempo, é também conhecido que a ideia de Paraíso (em qualquer religião) remete para um lugar de gozo, felicidade, ausência absoluta de qualquer actividade penosa ou trabalho.

Porém, o sentido das palavras sofreu (e sofre) evolução ao longo do tempo. Pese, embora, o sentido da produção dos escravos já representar algo de positivo, tendo em conta que a grande fonte da escravatura era a condição de vencido de guerra, sujeito à morte, e que ela foi superada pela escravatura, e a escravatura ter recuado, consideravelmente, durante os séculos medievais, a designação das actividades produtivas continuava com um sentido bastante negativo, de experiência dolorosa, próprio dos inferiores na escala social. Era, afinal, alvo de um preconceito social, que a estigmatizava. Mas foram esses mesmos séculos medievais que trouxeram uma nova imagem à palavra trabalho. Viram o fim da escravatura e da servidão e, com ele, viram a ideia de trabalho passar a ser actividade de homens livres – homens de mesteres e mercadores –, para o que muito contribuiu o influxo da Igreja, sobretudo dos mosteiros, onde os monges, nobres ou populares, eram todos iguais, filhos de um mesmo pai (o abade) devendo contribuir para a comunidade com o seu labor, segundo as suas capacidades. Durante esse tempo, outros termos se usavam para designar o fruto da ocupação produtiva do homem: labor e obra.

No século XVI, havia de assistir-se a novas alterações. Começou a utilizar-se a palavra trabalho em vez de obra ou de labor, palavras de cujo uso, contudo, os mais velhos dos leitores ainda se recordarão. Aliás, com as grandes transformações ideológicas do séc. XVI, mormente no campo da religião, o trabalho, como ocupação profissional, ganhou foros de função social e, sobretudo, dignidade. Mas foram a Revolução Francesa, a Revolução Industrial e o desenvolvimento do capitalismo, os grandes movimentos que arredaram, por fim, os preconceitos contra o trabalho.

Trabalho passou a designar a actividade ligada à “máquina” e à produção. A palavra “trabalhador” transmutou-se ao sentido dos antigos termos agricultor e operário, a ponto de, no final do século XIX, os três últimos termos mal se distinguirem entre si. Contudo, todo este processo não decorreu sem dificuldades, sem vítimas e sem lutas. Mas, a força da ideia vingou e o trabalho foi, por fim, reconhecido, como função social imprescindível ao progresso do homem e à realização do indivíduo que a executa.

Chegamos, assim, aos nossos dias. Que pensamos, hoje, do trabalho? De um modo geral, todos o desejam, pois é factor de sobrevivência, inclusão social e dignificação. É ainda uma obrigação social. Ainda há pouco tempo, se tinha por certo que todo o trabalho era digno do homem, fosse ele qual fosse. Hoje, porém, com as modas, o politicamente correcto e, com novo preconceito, os políticos falam em “trabalho digno”. Nada mais errado. O trabalho é digno por si mesmo, não precisa, nem deve ser adjectivado. O que se deve exigir – e os políticos deviam ser os primeiros a percebê-lo, a lutar por isso e a fazer a sua pedagogia – é que as condições de trabalho, sejam elas materiais, emocionais ou morais, essas sim, devem ser dignas. Repudiemos a nova moda, pois todo o trabalho é digno, todo o trabalho é útil à sociedade, todo o trabalho dignifica o homem.

Maria Alegria Marques