''Nunca podemos hesitar em amar e amar profundamente…'' | Opinião
Tínhamos combinado, há muito, conversar. A sua vida tem sido marcada por desgostos, fracassos, dores e até desamores. Começou a conversa por desabafar com um semblante triste:
- A minha vida não tem ponta por onde se pegue!
Depois, chorou. Chorou muito, sem nada dizer. Percebi como era imenso o seu sofrimento. Fiquei em silêncio, como que a tentar «ler» cada lágrima. Sim! Uma das formas mais nobres de «enxugar» as lágrimas dos que sofrem, é «ler» a dor que elas representam. Passado uns minutos, tirou do bolso um papel.
- Escrevi uns tópicos do que queria desabafar, para não me perder. Ando completamente desnorteado.
Lá começou, então, a contar as histórias do seu viver. Uma ou outra vez, tive dificuldade em conter-me, nas emoções. Escutarmos uma pessoa sofrida não nos torna imunes a sentir, em nós, a sua dor. Enquanto me falava, confirmava para mim próprio que, na vida de cada um, há sempre «razões» que explicam e dão sentido ao que somos e ao que fazemos.
Entretanto, ele olhou para o relógio. Já tinha passado muito tempo.
- O tempo passou tão rápido! Ainda tinha tanta coisa para lhe contar. Mas, tenho de ir, já são horas de almoço. Já viu, nem o deixei falar. Desculpe, senhor padre!
Sorrindo, disse-lhe que ficasse à vontade e o importante era ele ter falado. Que, quando fosse possível, noutro dia, falaria eu. Levantámo-nos e, antes de lhe abrir a porta, ainda me disse:
- Deixe-me dizer-lhe só isto. Tenho tanto medo de amar de novo. Como viu, sempre que o fiz, o resultado foi sempre um desgraçado sofrimento! Não vale a pena!
Estremeci com o que me acabava de dizer. Nisto, dirigi-me à minha mesa de trabalho, abri uma gaveta e tirei de lá uma pequena cruz e dei-lha. Compreendi que estava confuso com a minha oferta, mas só lhe disse:
- Tem de aprender com Ele, como se ama, sem hesitar, até ao fim, apesar da dor que a cruz representa.
Ele, ficou emocionado e agradeceu. Despedimo-nos com a promessa de um novo encontro.
Ao fim da noite, já tarde, ouvindo um pouco de música, recordei aquela conversa. Emergiu, então, em mim, a convicção de que nunca podemos hesitar em amar e amar profundamente. Talvez receemos o sofrimento que o amor profundo pode causar. Quando aqueles que amamos profundamente nos negam, rejeitam, abandonam ou morrem, ficamos com o coração despedaçado. Mas que isso não nos impeça de amar em profundidade. O sofrimento que provém do amor profundo torna o nosso amor ainda mais fecundo e poderoso. É como uma charrua que rasga o solo para permitir à semente ganhar raízes e tornar-se numa planta forte.
Sempre que experimentamos a dor da negação, da ausência ou da morte, enfrentamos uma escolha. Podemos tornar-nos amargos ou frustrados e decidir não amar mais, isto é, «desistir de viver»; ou podemos enfrentar a nossa dor, com bravura e deixar que o solo do nosso coração, que nos confere uma identidade única, enriqueça e seja capaz de dar mais vida à nossa vida. Quanto mais tivermos amado e permitido a nós próprios sofrer por esse amor, tanto mais capazes seremos de deixar o nosso coração alargar-se e aprofundar-se; seremos mais nós mesmos, na bondade e beleza que nos define desde dentro.
Quando o nosso amor é verdadeiramente generoso e criativo, aqueles que amamos não deixarão o nosso coração, mesmo quando se afastarem de nós. Tornar-se-ão parte de nós, habitarão dentro de nós, serão nossos. Os que amámos profundamente tornar-se-ão, para sempre, parte de nós! Quanto mais longa for a nossa vida, tantas mais pessoas conheceremos e com quem nos relacionaremos. Mas, serão muito poucas aquelas habitarão o nosso coração, pelo amor. Aliás, só desde o nosso interior, do nosso coração, poderemos reconhecer os «nossos», porque os amamos, dos outros, os «desconhecidos» que nos rodeiam.
Já agora, os que estão vivos dentro de nós, porque os amamos, dar-nos-ão sempre vida. Sim! À medida que os amamos mais profundamente, mesmo que sofrendo, o solo do nosso coração rasgar-se-á cada vez mais e regozijar-se-á com a abundância dos frutos de bem e de bondade que hão de brotar.
Padre Rodolfo Leite