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Nunca mais lhe perdoarei! | Opinião


tags: Padre Rodolfo Leite Categorias: Opinião terça, 05 julho 2022

Foi um dia, em que tinha ido, até à Figueira da Foz, ver o mar e ler um pouco. Sentei-me na esplanada habitual e pedi uma água. A tarde estava excelente. Tentei concentrar-me e abstrair-me do ruído das conversas, nas mesas que me rodeavam. Não estava a ser fácil, pois notava-se um empolgamento nas pessoas, ao falarem umas por cima das outras. Nisto, escuto numa mesa atrás mim:

 

- Nunca mais lhe perdoarei. Prefiro morrer a perdoar-lhe.

 

Aquela afirmação, dita num tom ríspido e agressivo, fixou ali a minha atenção.

 

- O mal que ela me fez, não tem perdão. Não percebes!?

 

A outra pessoa, que estava com ela, ia dizendo, com serenidade:

 

- Não digas isso! Todos falhamos. Todos cometemos erros. Tens de perdoar! Tu não andas bem. Essa zanga até parece que te está criar ódio dentro de ti! Tu não és assim!

 

- Já te disse. Assunto arrumado. Olha, tenho de ir. Obrigado pelo café.

 

Ouvi a cadeira a arrastar-se e a pessoa a levantar-se. A outra, ainda lhe disse:

 

- Fica um pouco mais. Estás a ver?! O sinal que precisas de lhe perdoar é o estado em que ficas sempre que te falo no assunto. Não estás bem!

 

Ela respondeu, como que irritada:

 

- Já te disse que não. E se queres manter a nossa amizade, não me voltes a tocar no assunto.

 

Mais tarde, de regresso à Mealhada, veio-me à mente aquela conversa que escutei. Não sei quem eram nem o assunto que levava a uma postura tão intransigente. Com efeito, é real a dificuldade em viver, no dia-a-dia, aquela reconciliação e aquela fatigante procura da comunhão, com os outros, que constituem um dos pontos essenciais da nossa vida humana. Mas, sei que o Evangelho nos chama a isso, e até nos pede algo mais, o amor aos inimigos. Loucura, pensarão alguns; lindas palavras, utopia que nunca encontrará realização. É o que assim pode parecer! Será que é realmente possível amar o inimigo, e amá-lo precisamente enquanto manifesta a sua hostilidade e inimizade, o seu ódio e a sua adversidade? É humanamente possível?

Este apelo ao amor do inimigo parece porventura fascinante em teoria, mas desfaz-se no esquecimento e não encontra nenhuma consistência existencial perante situações precisas e concretas de inimizade e maldade que uns sofrem e outros fazem. Importa não nos resignarmos, a esta contradição, e não esquecermos que o amor chega através de um longo caminho, um lento exercício, porque o amor não é espontâneo, exige disciplina, luta contra o instinto da ira e contra a tentação do ódio e da vingança.

Aliás, Jesus, quando nos pede para amar o inimigo, coloca-nos numa tensão, num caminho que parte sempre do superar a tentação de vingar o mal recebido, para chegar a contrapormos ao mal com aquela atitude nobre da não-violência, confiando na capacidade de amor, que habita os corações e transforma a vida das pessoas. Só desta forma tomaremos consciência de que o inimigo é aquele que pode realmente descobrir o que nos habita no coração e que não emerge quando nos encontramos de boas relações com os outros.

Quando, na verdade, somos chamados ao perdão dos inimigos, podemos aceder ao verdadeiro conhecimento de nós mesmos e julgar em profundidade a qualidade do nosso amor. Mais. Perceberemos, nessa ocasião, que o verdadeiro inimigo está em nós e não fora de nós, e que a luta a travar não é contra o outro, mas contra a injustiça do nosso coração, contra a absolutização do nosso «eu» à custa dos outros, porque não queremos conjugar o amor, em nós. Se não assumirmos o outro - em especial o outro que se fez nosso inimigo, que nos contradiz, que nos calunia - aprendendo assim a vê-lo com os «olhos» de um coração capaz de amar, nunca chegaremos a amá-lo!

Convém, também, percebermos que perdoar aos inimigos será mais difícil se não somos suficientemente vigilantes sobre as atitudes que nos animam e é, por isso, que elas, por vezes, desfiguram a verdade e a bondade do nosso ser, ofuscam a capacidade do amor. Ora, a vigilância aos nossos comportamentos, sentimentos, atitudes e reações, é um elemento essencial para edificar a pessoa que desejamos ser e fazer emergir em nós o poder do amor que nos habita. Assim, há que ter sempre em conta tudo o que nos leva a agir de modo superficial e, depois, há que identificar, com discernimento, as verdadeiras coisas que nos pesam e destabilizam o coração e o impedem do amor. Vigiar é, no fundo, descobrir as nossas raízes em profundidade e não se deixar levar pelas seduções superficiais; é aderir às realidades sem se refugiar na imaginação e na fantasia; é sintonizar sempre o que somos de verdade com o amor de que somos capazes!

Padre Rodolfo Leite