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''Ver com o coração…'' | Opinião


tags: Padre Rodolfo Leite Categorias: Opinião sexta, 29 julho 2022

Foi com alegria que recebi a sua visita. Estavam a gozar uns dias de férias, em família, numa casa da Praia de Mira. Como era perto, decidiram vir à Mealhada. Reparei que os miúdos tinham crescido muito, no espaço de um ano, mas os pais sempre na mesma. Conversámos um bom bocado, sobre eles, os seus empregos e a preocupação com a escola dos filhos. A certa altura, ela diz:

 

- Estávamos mesmo a precisar de férias. A vida é uma correria e quase que nem temos tempo para nos vermos!

 

Sorri para ela e disse-lhe, como que a provocar:

 

- Acho que o vosso problema não é de visão, mas de coração!

 

Todos ficaram espantados a olhar para mim. Voltei a sorrir e, de uma forma descontraída, expliquei-lhes que, se não estivermos atentos, a vida de hoje faz-nos viver demasiadamente «por fora». Usamos pouco o «coração» no dia-a-dia! Entretanto, prometi-lhes que, depois de regressarem de férias, lá para meados de agosto, iria até Oliveira do Hospital, para jantar com eles e conversarmos sobre o assunto. Aceitaram de imediato e com alegria a minha proposta.

 

Mais tarde, fiquei a pensar neles e em tantos outros que têm vidas terríveis, onde não é fácil usar o coração. Sim! O «coração» é como centro da afetividade da pessoa e das suas decisões mais íntimas. É uma realidade primordial que nos remete ao mais profundo e vital da essência e existência do ser humano; designa o complexo mundo interior de cada um. O «coração» profundo é o centro do ser, o seu cerne mais íntimo, o «coração do coração», que não consiste no sentimento, mas no lugar do encontro com os outros e, também, com Deus. Trata-se do centro existencial que permite a cada pessoa orientar-se, como um todo e plenamente, em direção aos outros, ao bem e ao amor.

Recordações, pensamentos, projetos e decisões são alguns dos componentes essenciais deste «órgão vital» por excelência. O que acontece no «coração» tem caráter decisivo. É nele que se dá o despertar da identidade única de cada pessoa, é o santuário do seu interior. Nele está estampada e gravada a verdade mais transparente e irrepetível de cada um. Isto é, no centro de cada pessoa, unificando o seu ser, está o «coração», o «cofre» onde se guarda e oculta o que é mais nobre e rico em si.

O «coração» é uma dimensão na qual toda a multiplicidade e diversidade se harmonizam. É ele que possibilita a pessoa chegar ao equilíbrio de todo o seu ser, integrando a corporalidade, a afetividade, a sensibilidade, a razão. Depois, há os «olhos no coração» que permitem compreender o que nem os olhos do corpo, nem a razão são capazes de captar nos outros e em nós mesmos.

O «coração» do ser humano é a própria fonte da sua personalidade consciente, inteligente e livre. É o lugar das suas escolhas decisivas, onde emergem também a felicidade, a paz e o amor; é, ainda, o santuário da ação misteriosa de Deus, em cada um, e do encontro com Ele. Por isso, chegar ao «lugar do coração» é uma aventura fascinante e essencial para todos.

Nos tempos que correm, a imagem do «coração» perdeu muito da sua real expressão, tornando-se muito banalizada: corações nas emoções, nos desenhos, talhados em árvores, nas taças e chaveiros; corações em canções, rompidos, roubados, feridos, apaixonados, pesados, leves; corações que sentem, e outros insensíveis. Depois, vivemos um contexto de muitos «corações de pedra», intransigentes, cheios de ressentimentos e juízos implacáveis, corações fechados e reféns de preconceitos e de suspeitas, que acabam por envenenar as relações e corromper os laços humanos.

Sermos capazes de chegar ao «lugar do coração», permite descobrirmos as enormes possibilidades do nosso viver. Tornar-nos-á mais abertos e sensíveis a tudo o que é humano; ao mesmo tempo, fazendo emergir, em nós, um «coração» que se faz solidário e comprometido, que afasta das nossas relações tudo o que desumaniza: fechamentos, intolerâncias, julgamentos, tensões, ódios...! Capacita-nos, ainda, a olhar a realidade, a compreender cada pessoa na sua situação e a viver em constante entrega, a partir da gratidão e da responsabilidade, no horizonte da esperança. Sentir o pulsar do nosso «coração», ajuda-nos a recuperar o «humanismo» que se vai perdendo de forma galopante, nestes tempos de guerra e de pós-pandemia.

 

Já agora, em fevereiro deste ano, numa audiência, o Papa Francisco citou Saint-Exupéry, que no seu livro Principezinho escreveu: «Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos». Depois, explicou: “ver com o coração é ver o mundo e os nossos irmãos e irmãs através dos olhos de Deus”. Que este tempo de férias nos ajudem a redescobrir o «lugar do coração» em cada um de nós e a começarmos a «ver» a vida e os outros a partir dele. Boas férias!

 

Padre Rodolfo Leite