Diretor: 
João Pega
Periodicidade: 
Diária

Quem chega a um lugar novo deve procurar uma biblioteca


tags: Biblioteca, Mealhada Categorias: Região, Especial quinta, 17 agosto 2023

Na Mealhada, a integração e o acolhimento fazem-se à volta dos livros

 

Se, como dizia o poeta, a pátria é a língua onde se vive e pensa (“a minha pátria é a língua portuguesa”, escrevia algures Fernando Pessoa), um livro e uma biblioteca podem ser o lugar onde se descobre um novo lar, um novo território para morar. Na cidade da Mealhada, são muitos os emigrantes que, há anos, encontram no livro e na biblioteca o meio para se integrarem numa nova língua, e, através dela, num novo país. Laura, Isabelly, Marta e Maria. Os nomes são diferentes, os sotaques também, assim como as histórias de vida. Algo as une: vieram do Mundo para o nosso país, e, nessa difícil mudança, a Biblioteca Municipal foi e continua a ser o aliado incondicional.

Contam-nos as suas histórias. Histórias de descoberta, de conquistas e de sucessos. Com um traço comum - os livros e a biblioteca enquanto lugar de partilha, de comunicação e de procura de um mundo melhor.

 

O “espaço onde se é feliz

Maria tem trinta e três anos, cabelo loiro e olhos azuis, que antecipam um sorriso contagiante. Deixou a Ucrânia há oito anos, em busca do sonho de uma vida melhor. “Todas as pessoas procuram um sítio para estar melhor. Na minha terra agora está complicado, sim, mas na altura estávamos já a pensar em alguma coisa melhor para a nossa vida. Escolhemos Portugal e estamos contentes.”

A língua fez parte dos preparativos para a viagem de há oito anos. Maria recorda esses tempos. “Eu já pensava que nos íamos mudar para Portugal e tentei na Ucrânia perceber algumas coisas básicas: nomes dos dias, da semana, coisas fáceis. Mas, quando chegas, vês que a língua é mesmo diferente. Até algumas construções de gramática são muito complicadas. Mas, devagar e devagarinho, já estou melhor.”

Foi com este entendimento que, chegada à Mealhada, Maria dirigiu um olhar muito especial à biblioteca e aos livros. Foi ali que anteviu a forma de “entrar na nossa pátria”. “Depende muito de pessoa para pessoa: alguém pode adaptar-se e aprender uma língua de outras formas que não a ler ou numa biblioteca. Se alguém gosta de pintar, procurará em um sítio adequado a essa arte e lá pode ser feliz. Para mim esse espaço é a biblioteca.”

Marta já nasceu em Portugal, tem oito anos e é sua filha; mais reservada, oferece suaves e ternos sorrisos a confirmar as respostas da mãe. É hoje, em parte, a sua professora particular. “Com a Marta ficou tudo mais fácil. Em casa, falamos só em ucraniano, mas o resto da vida dela é todo em português. Por isso digo que é a minha professora em casa: explica-me muitas palavras que não percebo. Sempre que falo faltam-me palavras e falho as construções das frases. E ela ajuda-me.”

Da Ucrânia, Maria trouxe o gosto irreprimível pela leitura. “Em Portugal há algum tempo, percebi que só ‘apanhar palavras e folhetos de supermercados’ era pouco. A Marta contava 3 ou 4 anos e viemos à biblioteca escolher livros de literatura infantil”. Foi um passo em frente, revela-nos, sorrindo. “São coisas de crianças, mas fáceis de perceber e ajudam muito a conhecer a língua.”

Assim se deu a entrada na biblioteca, espaço de encontro mas também de reencontro. Encontro, porque “aqui podemos encontrar pessoas que recomendem livros." Mas igualmente de reencontro: “ler um livro em português que já conhecia em ucraniano ajudou-me muito. Dos primeiros que li foi da Pipi Milonga. Adoro esta autora, e encontrámos um livro dela numa feira, aqui na Biblioteca. Prometemos que íamos tentar ler pelo menos algumas páginas em português.”

Maria e Marta são presença regular na Biblioteca. Para Maria, é o passaporte de entrada na língua e na cultura do seu novo país; para Marta, é o suporte onde cresceu e aprende a imaginar o mundo. “Estamos sempre atentas, recebemos emails com as iniciativas, com novidades sobre livros e autores. Por vezes, compro um livro à Marta e depois o autor assina e lemos juntas em casa”, testemunha com emoção.

Não faltam a Maria desafios para o futuro. “Hoje tenho mais tempo e pretendo alcançar um outro nível”, revela com entusiasmo. E continua, desvelando, como se pela primeira vez, projetos que evidenciam a sua “fome” de aprender: “ler livros onde possa conhecer a História da literatura, desde o seu início, atravessando o folclore, tema de que gosto muito. Quero saber mais sobre isso, vou ter tempo e aqui há sempre pessoas que podem recomendar livros. É muito bom.”

 

A comunidade dos livros

Isabelly tem dezoito anos, é morena e a sua energia faz de si uma excelente conversadora. Está em Portugal, com a sua família, há pouco mais de um ano. Do Brasil trouxe um desejo claro: “Encontrar melhores condições, sobretudo para mim e para o meu irmão mais novo”, revela.

Dadas as semelhanças entre o português do Brasil e o português de Portugal, não foi na língua que Isabelly encontrou o primeiro obstáculo. “No começo, não me inseri muito na comunidade: preferi ficar no meu canto, apesar de aqui e ali tentar conhecer e ligar-me às pessoas.” Para combater esta dificuldade, revelou, passou a frequentar os locais “onde as pessoas de cá geralmente estão”. Foi assim que chegou à Biblioteca Municipal da Mealhada.

Recorda um dos primeiros contactos com este espaço: acompanhada pela mãe, “à procura do livro perfeito”, foi abordada por uma bibliotecária. “Já estava no balcão quando a Gisela me perguntou há quanto tempo aqui estou, de onde sou e onde moro.” O livro como pretexto, natural e fácil, para o acolhimento. Com o sorriso próprio de quem resgata uma boa memória, conta: “A dada altura perguntou-me se estava interessada em pertencer ao clube de leitura. Respondi sem hesitar: ‘totalmente’.” Num sussurro confidente, conta: “Comecei a chorar e pensei que me estava a acontecer algo muito bom.”

Apesar das imensas semelhanças entre o português do Brasil e o que cá encontrou, Isabelly notou diferenças importantes. “Às vezes é um pouco difícil de entender, sobretudo se falarem muito rápido.” Encontrou no livro um forte aliado. “Quando cheguei, requisitei um livro escrito em português do Brasil. Trazia notas sobre palavras traduzidas e isso foi essencial. Ainda hoje, sempre que leio um livro, aprendo coisas novas sobre a língua.”

Vários meses volvidos em Portugal, não tem dúvidas de que “no Brasil a cultura da leitura está pouco difundida” em comparação com a valorização que lhe é dada aqui. Razões: “o preço do livro: não é barato e leva as pessoas a preferir comprar outras coisas”, além de que “não é dito da forma certa que há obras a ler e autores a seguir.” Bibliotecas públicas como a que encontrou na Mealhada fazem toda a diferença.

Uma diferença que Isabelly assinala, com alegria incontida. “Onde morava, sei que há duas bibliotecas, mas se lá entrasse não encontraria livros que gostasse. Só os encontro nas livrarias, onde são caros.” O contraste com as novidades e os livros de maior sucesso que aqui encontra é, por isso, notório.

Mas Isabelly revela outra função dos livros: “a leitura passou a ser um escape”. Uma cura para os difíceis primeiros tempos. “Foi complicado distanciar-me da minha vida no Brasil. Havia momentos em que não queria pensar, fosse por algumas horas ou apenas por minutos. Quando isso acontecia, vinha para a biblioteca e mergulhava nos livros.” O livro como porto de abrigo, seguro e confiável. A sua história pessoal permite-lhe sugerir um conselho: “Quem chega a um lugar novo deve procurar uma biblioteca. Não só pelas atividades, mas sobretudo pelos grupos de amigos ou pela ajuda das pessoas que lá trabalham. Foi assim comigo, acredito que seja assim em todas as bibliotecas.”

 

Porto de abrigo sólido e inquebrável

Há muitos traços comuns entre a história de Isabelly e a de Laura, que, apesar dos seus vinte e um anos, possui consigo histórias de mundos deixados para trás, de súbito trocados por novos lugares, por novas gentes. Em outubro fará um ano quando, com a família, atravessou o Atlântico e deixou a Colômbia, “para fugir à violência e à desigualdade.” A Mealhada foi o destino, e é aqui que procura ser feliz.

Laura adotou a “nova pátria” sem conhecer a língua que a habita. “Ainda que o idioma seja parecido, há muitas palavras que desconheço.” A adaptação ocorre ainda. “Muitas vezes, as pessoas têm de repetir certas palavras duas ou três vezes.”

Do “mundo de diferenças que separa Portugal da Colômbia”, Laura destaca uma, com um significado particularmente especial: “Aqui dão muito mais importância à leitura que na Colômbia”, onde “apenas se lê nos colégios e no máximo três ou quatro livros por ano”. Oferece-nos explicações, simples, mas que para si fazem sentido: a diferença “pode estar nas escolas, que não incentivam à leitura.” Ou ainda, acrescentou de imediato, nos hábitos familiares: “Em Portugal, num dia como hoje, sábado, os pais tiram um dia de descanso para passar a cultura da leitura aos filhos.”

Há menos de um ano na Mealhada, Laura tem nos livros e na biblioteca um porto de abrigo sólido e inquebrável. “Sempre que posso venho cá: é aqui que encontro os meus livros preferidos.” Reflete um instante, sorri de forma aberta e frisa que a biblioteca é “muito mais que livros.” Garante: “As pessoas que aqui trabalham ajudam-me muito e a biblioteca está repleta de atividades. Participo na atividade ‘Contos com Sotaque’, é muito divertido e todos interagem comigo.”

A biblioteca é a segunda casa de Laura. Os objetivos mais próximos estão traçados: “Nunca consegui ler um livro em português mas quero fazê-lo e sei que vou conseguir.” Uma meta clara, que vai muito além da leitura. “A biblioteca é indispensável para a minha adaptação, sem as atividades da biblioteca, nada seria igual”. A casa dos livros, uma vez mais, como casa da língua, da cultura e da ligação à comunidade. E o papel fundamental que lhe é atribuído pela Laura, pela Maria, pela Marta e pela Isabelly, entre tantas outras vozes possíveis. "Para integrar as pessoas, conhecer os livros e gente com nós, é absolutamente essencial que existam bibliotecas”, resume Laura.

 

Por: Gil Lourenço Ferreira