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Diária

Saber pôr vírgulas… na vida!


tags: Vida, Categorias: Opinião sexta, 26 janeiro 2024

Como humanidade, estamos vivenciar um tempo diferente e que, se calhar, muitos de nós nunca pensamos viver para ver tal situação. Sem dúvida que são tempos que nos desafiam à resistência, à criatividade, à solidariedade, à responsabilidade cívica e a uma redescoberta e ao fortalecimento das nossas relações com a família, connosco mesmos e com o próprio Deus. Sozinhos, não vamos ser capazes de superar esta crise económica e social! Não venceremos este «desconstrucionismo cultural», esta «anestesia do nada» gerador de indiferença, esta forma de viver mascarada que gera a mentira do que somos e fazemos!

Uma escritora judia do século XX, que viveu num momento obscuro da história da humanidade, Etty Hillesum, convida-nos, no seu Diário a “reinventar a esperança” e a “olhar os lírios do campo”. Sim, são tempos de levantarmos os nossos olhos e olhar para aquilo que é mais vasto, para aquilo que está fora de nós. No meio da dor e do sofrimento que nos invade, somos convidados a velarmos uns pelos outros, a exercermos a nobre virtude da solidariedade. Uma das grandes lições de Etty Hillesum é a arte da escuta, uma espécie de entrar dentro de si própria, abrindo espaço para a revitalização, que nasce da contemplação, da conexão com o eterno, do abraço ao desabalado espetáculo da vida, que podemos identificar na luz do dia, nas flores, na nossa própria humanidade, na espantosa realidade das coisas.

No dia 5 de setembro de 1941, Etty escreve no seu Diário: “Preciso mesmo de me tornar mais simples. Deixar-me tornar um pouco mais viva, não querer ver imediatamente resultados na minha vida. O remédio sei-o agora; preciso é encolher-me num canto, no chão e, assim encolhida, escutar o que se passa dentro de mim. A pensar nunca resolvo o assunto. Pensar é uma enorme e bela ocupação quando se estuda, mas não é a pensar que uma pessoa consegue ‘sair’ dos estados de alma difíceis. Nesse caso outra coisa tem de acontecer. É preciso saber tornar-se passivo, pôr-se à escuta e encontrar de novo o contacto com uma parcela da eternidade.

Esta passagem é assombrosa, porque Hillesum, no meio das suas paixões e desejos, do narcisismo e do egoísmo, aprende a arte de escutar o pulsar do seu coração, a aceitação da sua própria história nas suas sortes e infortúnios, o passar da cabeça ao coração, o viver com inteireza e encontrar para si própria a clemência. Começa a assimilar cada pulsar como um bombeamento do sangue para todo o seu corpo. E sobretudo, vai-se empenhando em revitalizar as várias dimensões da vida, à procura de sentido e de harmonia interior. De uma forma lúcida, Etty Hillesum procura uma liberdade que seja cada vez mais responsável, aprende a arte do autodomínio, do reequacionar dos seus condicionamentos pessoais e culturais. À medida que vai reconhecendo os seus picos emocionais, vai ordenando o seu interior num contínuo processo de aceitação, integração e superação. O escutar o interior da intimidade permite a Etty reconhecer que algo está a acontecer dentro de si própria, um processo de cura em ordem à sua profunda grandeza humana, um amadurecimento que permite a unificação do seu ser.

Etty Hillesum é como que uma terapeuta da esperança, que soube escutar o mais profundo de si mesma: “Escutar, escutar por toda a parte, escutar até ao mais profundo dos seres e das coisas. Amar e largar aqueles que amo, aceitar assim morrer, mas para renascer – tudo isso é tão doloroso, mas também tão pleno de vida!” (08/03/1942). O grandioso caminho de auto-aceitação que Etty Hillesum percorre, permite enfrentar os seus próprios medos, anseios e até mesmo a morte para ver o que estava a acontecer nas experiências e nas lutas dos outros. Em vez de se centrar nos seus próprios combates, o seu maior desejo é curar as feridas. Mas para essa cura se realizar é preciso calar as vozes, calar o ruído, calar os embaraços interiores, que muitas vezes são uma cápsula de desesperança à nossa vida e nos blindam num silêncio que não é vida. Precisamos de deixar cair essas paredes interiores e colocarmo-nos à escuta, à escuta daquilo que Deus nos tem para dizer. Este gesto é um gesto que nos identifica, é um gesto que nos diz quem nós somos, e é um gesto no qual continuamente nos reencontramos.

O entrar em si mesma, permitiu que Etty Hillesum encontrasse o seu tesouro mais precioso: Deus! E é com Deus que ela mantém um “diálogo ininterrupto”. Com ela, aprendemos a não colocar demasiado cedo os pontos finais na nossa vida, a não contar somente connosco e com a nossa força. Tantas vezes temos a tentação de colocar o ponto final, desiludidos, demasiado prematuramente, porque não contamos com a força de Deus, com o impacto de Deus, com aquilo que Ele pode fazer em nós. E, por isso, em vez de pontos finais, nós devíamos pôr vírgulas. Vírgulas que são esses tempos de espera, esses tempos de suspensão. A nossa vida, em vez de a preenchermos com grandes decisões para todos os tempos, devíamos criar tempos de espera, tempos de pausa, à espera de Deus.

 

P. Rodolfo Santos Oliveira Leite