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Vidas sem valor


tags: Vida Categorias: Opinião sexta, 02 fevereiro 2024

Cátia é o nome da primeira vítima de violência doméstica do ano. De 40 anos, foi morta à facada pelo companheiro, na madrugada do dia 17 de janeiro, em Paião, na Figueira da Foz, portanto bem perto de nós. O crime terá ocorrido na própria cama do casal, com a filha, de 12 anos, no quarto contiguo. No dia seguinte, o agressor telefona para o trabalho da vítima e alerta “A Cátia não vai trabalhar, porque está morta” e entrega-se às autoridades. Vizinhos referem os conflitos e as discussões constantes entre o casal, face às quais ninguém interveio, e a vítima manteria o silêncio sobre o que se passava em casa, nomeadamente no local de trabalho.

Às mulheres pede-se-lhes que calem por dentro, que cozinhem em lume brando, vigiado e controlado pelos homens e pela sociedade, para que nada venha por fora, pois como aconselha o ditado popular nesses cozinhados “não se mete a colher”. Mas se alguém o tivesse feito, o trágico desfecho daquele relacionamento abusivo poderia ter sido diferente. Tal como tantas outras situações de violência conjugal e familiar poderiam ser oportunamente evitadas caso todos nós percebêssemos que temos a obrigação de ajudar quem está a sofrer continuadamente, mesmo quando a pessoa/vítima ainda não consegue compreender ou aceitar que precisa de ajuda.

E “meter a colher” em Portugal é legal. A violência doméstica é crime público, o procedimento criminal já não está dependente de queixa por parte da vítima, bastando uma denúncia ou o conhecimento do crime, para que o Ministério Público promova o processo. Tratou-se de assumir perante toda a sociedade, que a violência doméstica é um crime que diz respeito a todos/as. Passaram-se mais de duas décadas desde esta importante conquista, que permitiu alterar positivamente a própria perceção social do crime e a intervenção na problemática. Lamentavelmente, ainda continuamos com números esmagadores de violência doméstica. Números dramáticos no que respeita a mulheres assassinadas todos os anos em Portugal.

Por vergonha e por medo, centenas de mulheres continuam a aguentar caladas décadas de maus-tratos; os agressores são, aliás, particularmente persuasivos no que se refere a manter as vítimas em silêncio. E, quantas vezes, os ciclos da violência e relacionamentos abusivos acabam com a morte da mulher às mãos do companheiro, como aconteceu com Cátia. Muitas dessas vítimas, na maioria das vezes, já tinham apresentado queixa. As suspeitas de corrupção bastam para que alguém seja preso preventivamente; mas alguém que ameace outrem de morte pode continuar na sua vidinha até que cumpra as ameaças. O que a Justiça Portuguesa nos diz, através deste modelo de atuação, é que o património vale mais do que a vida - ou, pelo menos, do que certas vidas.

As designadas Casas Abrigo para vítimas não são a resposta: por que razão terão de ser estas a sair de casa, sacrificar as suas vidas e viver escondidas? Por isso aplaudo a primeira Estratégia Nacional para os Direitos das Vítimas de Crime (ENDVC), aprovada no passado dia 5 de janeiro, em Conselho de Ministros, e que deverá vigorar de 2024 a 2028. Esta iniciativa prevê criar resposta para retirar agressores da casa e também anuncia a criação de uma aplicação digital para facilitar as denúncias em várias línguas. Esta aplicação e a rede de apoio que proporciona, pode ajudar muitas pessoas. Não só aquelas que precisam de quebrar o ciclo, mas também as que querem “meter a colher” numa situação de violência dentro do seu círculo próximo e não sabem como fazer. Esperemos não fique no papel, que funcione efetivamente.

Uma pessoa que agride e ameaça outra de morte deve ser imediatamente afastada do contacto. Prisão preventiva e julgamentos céleres: são estes os instrumentos capazes de travar o morticínio em curso. Se fossem mais utilizados teriam também um efeito pedagógico, quer sobre os criminosos, quer sobre as vítimas. Eles pensariam duas vezes antes de ameaçar. Elas não esperariam pela ameaça de morte - ou pela própria morte - para denunciar a violência a que são sujeitas, antes que ocorra o facto trágico.

Marília Alves