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Do Carnaval a Quarta-feira de Cinzas…


tags: Padre Rodolfo Leite Categorias: Opinião sexta, 23 fevereiro 2024

Todos os anos, vivemos um curioso itinerário: “passamos” do Carnaval à Quarta-feira de Cinzas. Trata-se de uma das expressões colectivas, onde a tradição, a cultura, a história e a fé se encontram para deixar transparecer, com assombrosa claridade, um dos nossos contrastes profundos. Assim somos nós, às vezes escondidos por detrás das máscaras, ou envolvidos em plumagens brilhantes. E outras vezes, necessitados de nos desfazer das capas para poder contemplar a nossa identidade, ao mesmo tempo, autêntica, profunda e frágil.

Algo disto acontece no Carnaval. É uma espécie de apoteose do sonho, do espelhismo, da vaidade. Não há nada mais que a fachada que alguém quer mostrar. É uma curiosa metáfora de como, às vezes, podemos viver. Disfarçamo-nos de fortes quando sabemos que somos vulneráveis; aparentamos ser resistentes quando, na realidade, estamos quebrados por dentro; manifestamos coragem quando o medo bloqueia a nossa vida; escondemos as inquietações habituais, os desgostos ou as feridas, os fracassos e a falta de sentido na vida...!

Vivemos a cultura da “civilização do espetáculo”. A humanidade passa por uma etapa de progressiva atrofia da interioridade, na qual a vida deixou de ser vivida para ser representada. As pessoas, como os atores que representam num cenário, vivem para mostrar-se para fora, carecem de sedimento interno. Através das redes sociais não há nada mais oculto, e o que é mostrado ao exterior está doente de superficialidade. As pessoas mais criativas, que antes perseguiam ideais e causas mobilizadoras, agora já não conseguem senão representar uma farsa; nada escapa à banalização generalizada imposta por uma cultura focada na imagem pública.

É cada vez mais difícil a criação de um espaço interior, em sintonia e bem integrado com o mundo exterior. É cada vez mais difícil o caminho para a autenticidade, para a vida esforçada que aposta pela profundidade pessoal e pelo compromisso. Pode-se dizer que a civilização, na qual vivemos, converte em árdua a aspiração evangélica do “escondido” e “oculto”, porque com a multiplicação de presenças superficiais – facebook, whatsApp – trivializou e banalizou a intimidade.

Vestir-se de saco e cobrir-se de cinzas” seria a outra face desta mesma moeda. É como quem tira a maquiagem diante de um espelho, para encontrar-se com a pele desnudada, como quem vai despojando-se de camadas de roupas e vai ficando desprotegido. Neste tempo de Cinzas, a liturgia insiste para que possamos ver a nossa verdade, sem adornos; contemplar-nos e saber quem somos; aceitar a nossa fragilidade, reconhecer os dons e os limites; descobrir as fendas por onde a vida se esvai, para ver se há algo a fazer com elas; confiar no Deus que nos conhece melhor que nós mesmos; e poder partilhar este nosso ser no compromisso com os outros.

Procurar Deus, onde e como Ele quer ser procurado, significa confrontar a nossa própria interioridade, com toda a sua complexidade de desejos contrapostos, e desmontar fantasias enganosas sobre nós mesmos e os nossos objetivos de vida. A experiência quaresmal significa caminhar para a vivência de um Evangelho mais autêntico, lutar contra uma cultura que premeia a exibição, mergulhar no “oculto” de modo a que se dilate, em nós, um espaço interior, pois é no oculto e no escondido, onde vai ser possível um encontro com Deus.

A Quarta-feira de Cinzas abre-se com o conhecido texto de Mateus sobre a esmola, a oração e o jejum. Tais “práticas quaresmais” são uma mediação para reaprender o caminho de volta ao coração, desvelando (tirando o véu ou as máscaras) a nossa interioridade para poder viver com mais verdade e coerência. Mateus caricaturiza, exagera e amplifica o comportamento erróneo daqueles que vivem o “complexo do pavão”. O texto não critica que se dê esmola ou se faça oração e jejum, mas o “por quê” e o “para quê” de tudo isso: “para chamar a atenção”, “para serem elogiados pelos outros”, “para serem vistos”. Ou seja, faz-se da oração, esmola, jejum, uma autocelebrarão ou exibição de si mesmo.

Somos convidados a viver a Quaresma como um tempo de libertação. Neste tempo litúrgico. teremos a oportunidade de experimentar um modo de viver, onde a verdadeira liberdade terá a oportunidade de se expressar. Não se trata de estar a olhar o nosso próprio umbigo: se queremos mudar as estruturas injustas, se queremos enfrentar o mal sistémico, se cremos que outro mundo é possível, temos que começar por nós mesmos. Jejuar, dar esmola e orar...! Três simples propostas para sermos melhores e mais humanos.

Rezar para conhecer mais Deus, para conectar com o que Ele deseja para mim e desejar, também eu, com Ele. A oportunidade de sentir a Sua presença no meu dia-a-dia e de reconhecer que, às vezes, Ele não passa: não o deixo passar. Tempo também de agradecer o bem que Ele realiza na minha vida e na das pessoas que me rodeiam. A oração é um encontro necessário, especial, insubstituível, para prestar-lhe toda a minha atenção.

Jejuar é deixar de lado o que causa dano, para afirmar o que merece um espaço na minha vida. Sou chamado a jejuar de preconceitos, de incompreensão, de intolerância, de egoísmo, de soberba, de mentiras... Jejuar de desculpas que me impedem olhar a realidade de frente, e optar por assumi-la com toda a sua dureza e a sua riqueza. Distanciar-me da vida superficial e escolher a vida plena, profunda, comprometida. Aprender a jejuar, não como um sacrifício vazio, mas por amor; abraçar a renúncia que me abre a uma vida nova.

Esmola é ser chamado a partilhar o muito ou o pouco que tenho, a descentrar-me, a fazer da minha vida uma contínua saída em direção aos outros, sobretudo os mais pobres e excluídos. Praticar a esmola liberta os braços para acolher, alarga o coração para ser mais compassivo, movimenta os pés para uma maior prontidão no serviço, desperta uma presença inspiradora junto àqueles que estão abatidos.

 

Já agora, estes desafios aos quais sou chamado, são as atitudes centrais na escola da Quaresma e da vida. Os seus frutos serão a liberdade, a justiça, a Páscoa, no fundo, a Vida Nova que cada um anseia!