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"O valor do sacrifício…!"


tags: Mealhada Categorias: Opinião sexta, 08 março 2024

Desde sempre, parece-me ser minha obrigação e responsabilidade, como cidadão e como padre, denunciar a barbárie e a crise para a qual caminha a nossa sociedade, primeiro devagar e depois a passos largos. Só agora, começamos a dar-nos conta que não é mais possível prosseguir a estrada que trilhámos nas últimas décadas, que a falta de igualdade e de justiça torna a nossa vida - que é sempre «vida em comum», não o fosse por outras razões, sê-lo-ia por vivermos na mesma terra - mais difícil, menos segura, mais conflitual, mais bárbara. Estamos a tomar consciência de que viver com o mito idolátrico do «tudo e agora», do «fazer tudo que é tecnicamente possível» não nos garante um futuro bom, que pensar apenas no dia de hoje, apenas em nós como indivíduos, empobrece a terra e aumenta o deserto, torna-nos incapazes de deixar às novas gerações uma «herança» no sentido verdadeiro e nobre do termo.

Contudo, hoje, parece poder dizer-se, com convicção, que se vislumbram sinais de esperança. Muitos já começaram a assumir e a viver destemidamente numa dinâmica de «sacrifício». Começamos a sentir a necessidade «fazer sacrifícios». Desde há algum tempo, pelo menos no mundo ocidental, que esta palavra «sacrifício» não está ligada à marca religiosa do seu étimo: «sacrum facere», «tornar sagrado» um objecto ou uma realidade, transferindo-a da dimensão profana para a divina, através de um ritual, ou de um conjunto de gestos que podem ir até à oferta de uma vítima, para agradecer aos deuses ou acalmar-lhes a ira, à procura esforçada de uma vida «melhor».

Assim, a geração, ainda crescida numa época de cristianismo, foi educada de forma humana e cristã a «fazer sacrifícios»: a privar-se de algumas coisas, a renunciar a outras, a contentar-se com aquilo que havia de resto. Alguns mais antigos, nos anos do pós-guerra, viviam mesmo em condições de fome e de miséria, e «fazer sacrifícios» para eles não era uma opção, mas uma condição que lhes tinha caído à sorte. Mas, o convite obsessivo à privação, tantas vezes sem motivações ou sem resultados palpáveis, criou uma reacção de rejeição: ninguém queria mais ouvir falar de sacrifícios, muito menos continuar a fazê-los, sobretudo na hora do «boom» económico.

Neste sentido, há que assumir a culpa por não se ter sabido transmitir às gerações sucessivas o valor do sacrifício. E hoje, incapazes que estamos de comunicar a valência humanizante do esforço e da renúncia, encontramo-nos todos numa cultura incapaz de vislumbrar um horizonte de bem comum e de esperança, assistimos à diminuição do número de pessoas prontas a dedicar tempo, meios, energia, bens a uma crescente humanização, a um incremento de convivência pacífica, à afirmação de valores e princípios dignos do ser humano ou, mais simplesmente, capazes de garantir um futuro melhor para os nossos filhos. Trata-se de uma falta grave porque o sacrifício é uma coisa séria: significa privarmo-nos de um bem, abstermo-nos de uma possibilidade tendo em vista um bem ainda maior que diga respeito a todos e não ao meu interesse pessoal. Gastar energias ao ponto de sacrificar a própria vida é possível e devido, se com aquele sacrifício se obtém justiça, paz e liberdade: quantos homens e mulheres na história sacrificaram tempo, recursos, afectos para realizarem ideais e para derrotarem a injustiça em benefício de todos.

Mas redescobrir o significado fecundo do sacrifício exige um discernimento de ações e comportamentos que, de há muito, recusamos exercitar, assumindo sem sentido crítico o que o consumo, o mercado e a propaganda nos apresentam como estilo de vida «normal». Assim não sabemos mais distinguir o necessário do supérfluo, nem conseguimos pôr ordem no nosso universo mental e comportamental, entre necessidades e desejos, vontades, sonhos e caprichos. É como se tivesse desaparecido a escala de prioridades: tudo parece estar no mesmo plano porque tudo se refere positiva ou negativamente às nossas sensações imediatas. Nós perdemos o sentido da communitas, como aquilo que nos liga com responsabilidade às gerações futuras: queremos ler, definir, viver, e consumir o nosso horizonte limitando-o a um «eu» narcisístico e prepotente, ou a um «nós» limitado e fixo que nos seja vantajoso e não à realidade.

Creio que esta perda cultural e ética esteja ligada ao enfraquecimento do significado dado aos «sacrifícios»: se não existem princípios a partilhar, se não existe um objectivo maior do que a satisfação pessoal e momentânea, se não se cultivam as relações intergeracionais, nem a responsabilidade perante o futuro do colectivo, será muito difícil renunciar espontaneamente a qualquer coisa ou aderir com convicção a uma renúncia imposta por circunstâncias adversas. Se falta um horizonte partilhado, se cada comportamento é eticamente indiferente, se queremos ter, por direito, tudo o que é técnica e economicamente possível então seremos impotentes diante de cada adversidade e senti-la-emos como uma catástrofe inelutável e procuraremos evitá-la sem os outros ou mesmo contra os outros.

O sacrifício é o débito que eu, livremente, assumo perante o outro porque de outra forma a communitas em si, deixa de existir. Só um ideal assim, elevado e altruísta, a esperança de contribuir para um mundo melhor do que aquele que conhecemos, a preocupação pelo bem-estar de quem vier depois de nós, a solidariedade para com quem, próximo ou longe de nós, não pode aceder aos bens essenciais que nós não damos sequer conta de possuir, pode empurrar-nos não apenas a aceitar os sacrifícios, mas a aceitá-los em consciência e com convicção: quantos entre os que nos precederam teriam enfrentado as dificuldades da vida se não esperassem obter uma vida melhor?

Já agora, o sacrifício está inscrito no amor, porque, nas histórias de amor, acontece sempre que, para o bem do outro, eu tenho e devo renunciar a qualquer coisa de que apenas eu beneficio, segundo o meu desejo ou capricho.

Padre Rodolfo Leite