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"Pedimos que falassem: Eis a voz!"


tags: Mealhada Categorias: Opinião quinta, 21 março 2024

Foram muitas as conclusões que se poderão tirar das eleições do passado domingo, 10 de março. As Eleições Legislativas marcam sempre a nossa vida coletiva, pelo impacto que o poder legislativo e a composição de um governo da República têm na nossa organização, mas as de 2024 anteviam uma mudança estrutural. Já se sabia que haveria uma mudança na chefia do Governo, era certo. Já se perspetivavam alterações na conjugação de forças politicas no parlamento. Já se temia que não se encontrariam soluções políticas de maior estabilidade. Tudo se confirmou.

Como já dissemos aqui noutras alturas, o cenário politico que Portugal terá nos próximos anos – ciclos políticos curtos, extremismo no discurso e na prática política, necessidade de coligações e consensualização negociada de medidas de gestão corrente – não é diferente do que já se passa em muitos das ‘nações polidas e civilizadas’, especialmente na Europa. Não deixa, no entanto, de ser algo a que não estávamos habituados. Mas não é nada que nos vá matar, nem a nós nem à nossa Democracia.

A conclusão maior que retirei, pessoalmente, das eleições de 10 de março, põe em causa muito daquilo que eu, sinceramente, acreditava.

Durante muitos anos, escrevo no Jornal da Mealhada há duas décadas e meia, nunca discuti o pressuposto de que a abstenção nas eleições democráticas se devia a uma generalizada desresponsabilização dos portugueses. A maioria dos portugueses não votava, e neste conjunto de pessoas estavam os desacertos dos cadernos eleitorais – mortos que não foram retirados, deslocados que nunca atualizaram a morada, e outras consequências administrativas – estavam alguns descontentes que esporadicamente decidiam não participar e, depois, um grande número de pessoas que se estavam a marimbar para a nossa vida coletiva. 

Eu, como muitos, olhava para os abstencionistas como aqueles que, por preguiça, por inércia escolhiam não votar. Por isso, gritei que votar é um Direito, mas também é uma obrigação. Por isso defendi a ideia do voto obrigatório. Por isso censurei muitos amigos e familiares que sistematicamente falhavam a ida à urna.

Eu estava redondamente enganado. E peço desculpa – publicamente – pela minha falha de análise.

No domingo percebi, claramente, que a coluna maior da tal maioria dos portugueses que não costuma votar é composta por homens e por mulheres que não estão satisfeitos com o funcionamento da nossa Democracia. É composta por pessoas que estão zangadas e chateadas e que, pura e simplesmente, não se identificam com nenhuma das propostas que lhe são servidas. Ou seja, não são pessoas irresponsáveis ou alienadas, são, por outro lado, pessoas a quem não agrada solução nenhuma.

Por pressão mediática, por pressão popular, entre outras pressões, houve para as eleições de 10 de março um sentido global de coação para que ninguém faltasse à chamada. E por isso mais pessoas foram às urnas e manifestaram-se. Havia uma hipótese, desta vez, de manifestação do seu descontentamento e protesto. E muitas destas pessoas escolheram essa opção.

No concelho da Mealhada, por exemplo, votaram em 2024 mais 1378 pessoas do que em 2022. Comparando os ganhos e as perdas de cada partido de 2022 para 2024, chegamos aos seguintes números: O PS perdeu 932 votos e a CDU perdeu 62 votos, a AD ganhou 327, o Livre ganhou 219 votos, a Iniciativa Liberal ganhou 179 votos, o Bloco de Esquerda ganhou 120 votos, o ADN ganhou 103 votos e o PAN ganhou 45 votos. O número de votos perdidos pelo PS e pela CDU está absolutamente disperso, exclusivamente, por estes partidos. O Chega, por outro lado, teve mais 1242 votos, quando o número de novos votantes foi de 1378. Naturalmente que estas contas são simplistas e difíceis de comprovar com evidências… até porque o voto é secreto, mas parece absolutamente claro que a voz dos até agora abstencionistas é maioritariamente a fazer ouvir Chega!.

Pedimos-lhes que falassem: Eis a voz! 

Não há muitas maneiras de combater o Chega. Muitas foram tentadas, mas o resultado está à vista. Falta, agora, perceber que o sucesso do Chega é apenas um sintoma, o sintoma de que as propostas da Democracia estão a falhar, de que não servem. A Democracia, por seu lado, é o único regime que permite que isto se diga, se assuma e se resolva. É preciso, de uma vez por todas, perceber que há uma resposta a dar a quem está descontente, se não, a contra-resposta poderá ser fatal.

Nuno Castela Canilho