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Artigo de Opinião: Notas Soltas sobre a Liberdade


Categorias: Opinião quarta, 24 abril 2024

Neste momento significativo, para a sociedade portuguesa, em que celebramos os 50 anos do 25 de abril, onde foi proclamada a liberdade, convém reflectir e ir percebendo o alcance que este valor de «sermos livres» possui e aporta, no momento presente, à vida de todas as pessoas e instituições, de forma transversal, e, ao mesmo tempo, o que o mesmo reclama no futuro.

Desde início e obrigatoriamente, há reiterar, sempre e mais uma vez, que as conceções de «pessoa» e de «liberdade» estão essencialmente unidas, de modo que todo ser pessoal é livre, e todo ser livre é pessoa. A rejeição a deturpação de uma conceção implica a rejeição e a deturpação da outra. Ambas conceções se afirmam e implicam-se mutuamente. Uma pessoa que vive, sempre e intensamente disponível, para se realizar, mostra-se e é livre. Quando destituímos a identidade, dignidade e verdade de uma qualquer pessoa, estamos a feri-la na sua liberdade.

Mais ainda, penso que todos já constatámos uma indiferença crescente na sociedade, formada por cada um de nós, que, para as nossas decisões livres, tendemos a considerar a questão da «verdade» como um obstáculo, dando, por isso, a prioridade, ou a facilidade, às considerações utilitaristas, aos oportunismos, aos jogos de interesses e, até, às falsidades simpaticamente afirmadas, como se fossem mesmo verdade. Infelizmente, de tudo isto ficaremos reféns, para não dizer escravos.

Contudo, há uma necessidade urgente de reencontrar os fundamentos, vinculativos, estabilizadores e superiores a qualquer subjetivismo, para a nossa convivência; caso contrário, cada um vive só para o seu individualismo, alimentando o seu «ego», e ostentando máscaras que escondem a mediocridade do que, na verdade, se é. Se assim não for, mais cedo ou mais tarde, esta realidade irá gerar a desilusão, o fracasso e, sobretudo, a desgraçada desconfiança conflituosa.

Embora suspeito, porque sou padre, estou convencido que um destes fundamentos, para uma convivência bem sucedida, é a religião. “Assim como a religião precisa da liberdade, assim também a liberdade precisa da religião” (Wilhelm von Ketteler). Com efeito, a liberdade precisa duma ligação a uma instância superior. O facto de haver valores que não são, de modo algum, manipuláveis, é a verdadeira garantia da nossa liberdade.

Estou profundamente convicto que qualquer pessoa que seja sensatamente reta no que pensa, pura no que sente e bondosa no que faz, estará imediatamente de acordo com isto que refiro: a liberdade só se desenvolve na responsabilidade face a um bem maior, definido pelo binómio: a verdade e o amor.

Depois, um tal bem de «sermos livres» só é possível se for para todos, sem exceção, e jamais restrito a uma minoria, de amigos e compadrios, sejam eles ideológicos, económicos ou de outros «graus». Com efeito, devemos interessar-nos e cuidarmos sempre também por aqueles que nos rodeiam, desde dos que connosco vivem, aos vizinhos e a restante comunidade, em geral. Nunca poderemos esquecer: a liberdade não pode ser vivida de forma egoísta, interesseira, ou por uma «casta» minoritária dos que pensam, ou não, da mesma forma, pois provocaria a ausência de relações sadias e anulava os outros.

Na convivência humana, a liberdade não acontece sem a solidariedade. Aquilo que fazemos de mal para os outros, não é liberdade, mas uma ação culpável que prejudica os que vivem à nossa volta e a nós mesmos também. Só usando também as nossas forças para o bem e para o amor, dos e aos outros, é que podemos verdadeiramente realizar-nos como pessoas livres.

Isto vale não só no âmbito pessoal, mas também no da sociedade. Segundo o princípio de subsidiariedade, a sociedade deve dar espaço suficiente e legítimo, às estruturas e instituições diferentes, quer a nível de identidade quer de natureza, sejam elas superiores ou inferiores, para o seu desenvolvimento e, ao mesmo tempo, deve servir-lhes de suporte, de tal modo que, um dia, possam também manter-se por si sós.

Precisamos de ter sempre presente que estas notas na vivência da liberdade, que envolve todos os âmbitos da vida de cada um, para a podermos continuar a viver, defender e promover, nas condições atuais. Precisamos disto mesmo, neste mundo que necessita de uma renovação cultural profunda e da redescoberta de valores fundamentais para construir sobre eles um futuro melhor (cf. Bento XVI, Encíclica Caritas in veritate, 21).

 

Já agora, “O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém nos extraviámos. A cobiça envenenou a alma dos homens... levantou, no mundo, as muralhas do ódio... e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e morticínios. Criámos a época da velocidade, mas sentimo-nos enclausurados dentro dela. A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado na penúria. Os nossos conhecimentos fizeram-nos cépticos; a nossa inteligência fez-nos empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos muito pouco. Mais do que de máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e ternura. Sem estas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido.” (Adaptado do excerto do discurso final do filme de Charles Chaplin “O Grande Ditador” – 1940).