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João Pega
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Diária

ABAADV prima por trabalho de excelência há 25 anos


tags: Cães-Guia Categorias: Entrevista quinta, 06 junho 2024

A Associação Beira Aguieira de Apoio ao Deficiente Visual (ABAADV), situada em Mortágua, já conta com 25 anos, nasceu a partir de pessoas que de alguma forma estavam envolvidas na problemática da deficiência visual. Desta forma, houve uma candidatura a um projeto comunitário por um conjunto de entidades (Escola Profissional Beira Aguieira, IEBA – Centro de Iniciativas Empresariais e Sociais de Mortágua, Município de Mortágua e Direção Regional de Educação do Centro) em parceria com a Federação Francesa de cães-guia, que foi aprovado. Seguiu-se a construção da escola e a formação de dois educadores da escola em França. São a única escola de cães guia do país e não há formação em Portugal para os educadores de cães-guia, todos eles completam a formação em França. Este projeto comunitário permitiu entregar, em 1999, a cadela Camila, educada unicamente em Portugal, a Augusto Hortas. Esta foi a primeira dupla Cego-Cão Guia formada em Portugal. Depois da conclusão do projeto foi constituída a ABAADV que é comparada a uma IPSS.

O Jornal da Mealhada entrevistou Mafalda Vicente, presidente da ABAADV desde 15 de fevereiro deste ano e Vítor Costa, um dos educadores mais antigos da escola, que explicaram toda a dinâmica da escola assente sempre na missão de valorizar a intervenção do Cão para promover a autonomia e a qualidade de vida das pessoas cegas.

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Neste momento quantas pessoas trabalham para a escola?

Mafalda Vicente - Trabalham 16 pessoas (um Diretor Técnico/Médico Veterinário, um Coordenador Geral, uma Gestora de Projetos, quatro educadores, três pré educadores, dois tratadores, uma animadora, dois administrativos), acrescida de um Consultor em Orientação e Mobilidade e de toda a estrutura diretiva, que funciona de forma altruísta. A ABAADV tem uma direção de cinco elementos, composta exclusivamente por voluntários, que juntamente com a mesa da Assembleia Geral e o Conselho Fiscal, compõem os seus Órgãos Sociais.

Como é feita a formação dos educadores de cães-guia, já que não há formação em Portugal?

Mafalda Vicente - Parte da formação é feita com os nossos educadores seniores e outra parte em França com alguns dos nossos parceiros. Importa referir que os educadores mais velhos acabam por ter um desgaste natural devido às caminhadas feitas com os cães que são cinco horas ou 11 km por dia. Portanto, um educador que já trabalha há 25 anos nestas condições começa a trabalhar internamente na escola em outras funções. Portanto, adaptamos o trabalho consoante as necessidades dos nossos colaboradores.

Os vossos cães vêm de onde?

Vítor Costa - O nosso edifício contem uma maternidade aqui na escola, temos algumas criações, porém existem, protocolos com escolas francesas que nos permite a troca de cachorros. Todas as reproduções são resultado de uma seleção cuidadosa de machos e fêmeas para obtermos linhagens de trabalho quer a nível de comportamento, temperamento e predisposição genética a nível das condições físicas.

Qual a importância das famílias de acolhimento no início de vida dos cães?

Vítor Costa – Não se consegue ter cães-guia sem famílias de acolhimento, seja aqui ou em qualquer outra parte do mundo. Só as famílias de acolhimento têm uma estrutura organizada para transmitir ao cão, a partir dos três meses, um contexto familiar. Os pré educadores dão formação às famílias de acolhimento para receberem o cão e como o devem educar, trata-se de um trabalho voluntário por parte das famílias onde tem que haver muita disponibilidade. O objetivo é que os cães tenham normas de conduta e de orientação como por exemplo a nível de horários de refeição, interação com crianças, locais de acesso e proibidos em casa, idas ao restaurante ao supermercado, entre outras aquisições que irão permitir ao cão perceber a dinâmica familiar.

Até que idade está o cão na família de acolhimento?

Vítor Costa – Até aos 12 meses.

Que raças são utilizadas para cães-guia?

Vítor Costa – A raça mais usada é Labrador Retriever, cerca de 90%. Contudo, também existem cães-guia que provêm do cruzamento de Golden com Labrador.

Como é feita a educação de um cão-guia a partir do momento em que vem para a escola?

Vítor Costa – De uma forma muito estruturada. Aliás temos parâmetros definidos no sistema onde temos todas as horas que o cão trabalha, que passa por diferentes fases. A fase de introdução que culmina com 12 horas de trabalho, aqui cada educador conhece melhor o cão que vem do pré educador e avaliamos parâmetros como por exemplo: a independência, se é ou não rápido, se tem algum tipo de medos, perante isto formo uma ideia sobre este cão. É na transição desta fase para a seguinte que verifico se o cão tem condições para continuar a educação, se deve por algum motivo voltar para o pré educador, ou se a função de cão-guia está excluída e raramente esta última situação acontece. Estando tudo bem, segue-se a fase de desenvolvimento, com mais 68 horas de trabalho, aqui o cão já tem o arnês, que representa para ele um instrumento de trabalho, e aprende tudo o que há para aprender. Aqui, importa avaliar como é que o cão reage a estímulos visuais, olfativos e tácteis, como reage ao stress e com as pessoas. O comportamento alimentar, ingestão de corpos, facilidade de adaptação e a troca de educador, são também fatores avaliados nesta fase. O cão é um animal feito de hábitos e interioriza praticamente tudo. Assim que ele esteja com estes conhecimentos adquiridos, passa para a última fase, a de conciliação que tem ainda mais 24 horas de educação e corresponde a dois meses. Aqui o cão é testado relativamente aos seus conhecimentos. São feitos testes de responsabilidade, maturidade e sentido de trabalho, pois vai trabalhar com uma pessoa cega que não tem capacidade de verificação e de antecipação. Portanto, fazemos um total de 104 horas de educação de um cão-guia.

 

 

Quando um cão está com o cego ou a ser educado não se lhe pode tocar, porque?

Vítor Costa – Não se pode distrair o cão. Em França e nos Estados Unidos existe muito rigor neste aspeto e em nenhum momento se pode acariciar o cão-guia. Contudo, eu deixo que toquem no cão que eu estiver a educar. O cão-guia transmite rapidez, segurança, autonomia nos trajetos da pessoa cega, mas traz, algo muito importante, integração social. Um cego que vai no metro com o seu cão-guia tem mais facilidade de que comecem a falar com ele para perguntar o nome do cão ou até de podem acariciar e isso é crucial na integração social destas pessoas.

 

Como funciona o processo de inscrição para um cego adquirir um cão?

Mafalda Vicente - O cego entra em contacto com a nossa escola, segue-se uma pré-inscrição, posteriormente há uma entrevista de forma a verificar se reúne as condições necessárias, caso tudo esteja dentro do previsto passa para a inscrição efetiva. Depois deste procedimento, a pessoa em causa fica em lista de espera, isto aplica-se a quem necessitar de um primeiro cão-guia. Já no caso de pessoas que estejam à espera de uma substituição de um cão-guia tem prioridade em relação a uma primeira inscrição.

Que condições são avaliadas na entrevista?

Mafalda Vicente – O cego tem que ter noções de orientação, mobilidade, ou seja, não pode ter nenhuma deficiência que impeça a locomoção porque o cão-guia é para ajudar na deslocação. 

Têm lista de espera?

Mafalda Vicente – Sim, uma lista com cerca de 30 cegos.

Quanto tempo um cego fica à espera do seu cão-guia?

Mafalda Vicente – Tendo em conta que formamos 16 duplas por ano, e temos 30 cegos, o tempo médio de espera é de dois anos.

Quanto tempo demora a educação de um cão-guia?

A educação de um cão guia demora cerca de 2 anos.

Como é feito o processo de adaptação entre o cão e a pessoa cega?

 Vítor Costa – É feito um período de estágio em que é formado o match durante duas semanas, e eu estou permanentemente com essa pessoa. A primeira semana é aqui na escola, o cego fica nas nossas instalações já com o cão, de forma autónoma, e eu faço sempre o acompanhamento. Na sexta feira o cego leva o cão com ele, mas não leva o arnês. Este só é entregue ao cego se tiver capacidades de gerir o seu cão. Na segunda semana de adaptação, o match (cego e cão-guia) já vão para o domicílio do cego e aí já efetuam os trajetos que o cão irá realizar diariamente, aí volto novamente a fazer o acompanhamento e caso esteja tudo bem entrego o arnês no fim da segunda semana.

 

 

Após estas duas semanas que outro acompanhamento é feito?

Vítor Costa – Após 40 dias volto à dupla para fazer um controlo de qualidade. Sem que o cão me veja dou indicações à pessoa, pelo telemóvel, para fazer determinados trajetos e filmo. Se estiver tudo bem o cão é cedido ao cego, é assinado um contrato de cedência. Note-se que o cão nunca deixa de ser propriedade da Escola!  

Quais são os motivos para a substituição de um cão-guia?

Mafalda Vicente – Os nossos cães chegam a um determinado momento da vida que não podem continuar a exercer as suas funções e têm de ser substituídos, seja pela sua idade ou pelo seu desgaste. Assim, tendo em conta que toda a vida do cego está organizada em função do cão-guia se não o tiverem irá condicionar toda a rotina diária. Neste sentido, as substituições são prioritárias.

Quando os cães já não exercem as suas funções o que lhes acontece?

Mafalda Vicente – O cão reforma-se! Caso haja condições por parte do cego o cão pode ficar com ele, pode também ir para uma família que o queira acolher, ou vem aqui para a escola onde já temos outros cães reformados que ficam na escola até ao fim da sua vida.

Têm testemunhos de pessoas que relatem as mudanças sentidas na vida após a aquisição de um cão-guia?

Mafalda Vicente – Sim! Recordo-me que um senhor disse “comecei a chegar com os pés enxutos casa, já não piso as poças de água”, porque o cão ajuda a ultrapassar determinados obstáculos. Para além disso, facilita a empregabilidade e a interação social. A autonomia que o cão-guia concede ao cego é o fator mais destacado, pois o cego já pode ir a locais onde não ia antes.

Têm projetos com instituições, como começaram?

Mafalda Vicente – Desde 2019 que introduzimos uma nova área de trabalho devido à necessidade de intervenções assistidas feitas com cães, nomeadamente idosos, que é o caso da Santa Casa da Misericórdia da Mealhada com a cadela Flecha, no lar. As intervenções assistidas por cães surgiram no âmbito do projeto “Estou CãoTigo” que teve uma primeira fase de capacitação da nossa equipa a nível de uma formação especifica com linhas orientadoras da IGDF (International Guide Dog Federation). Por motivos físicos ou outras condicionantes alguns dos nossos cães têm reforma antecipada e não podem ser cães-guia, contudo como já tinham um processo educacional grande, vão para as instituições no âmbito deste projeto. No fundo aliaram-se vários fatores, incluindo a sustentabilidade organizacional a nível da inovação e diversificação de atividades. A fase de implementação ainda continua em várias instituições de uma forma completamente estabilizada.

Que feedback têm tido das instituições onde este projeto, o “Estou CãoTigo”, está a ser executado? 

Mafalda Vicente – O feedback tem sido muito positivo. Aliás, este projeto foi financiado, inicialmente, pelo Portugal Inovação Social que fez uma avaliação de impacto e a nossa escola trabalhou com estas instituições a aplicação de uma escala especifica a cada beneficiário para perceber qual era o índice da qualidade de vida das pessoas antes e depois de iniciar o projeto. Um ano após a aplicação do projeto cerca de 70% das pessoas aumentaram, em alguns parâmetros, os índices de qualidade de vida, porém temos consciência que a implementação do projeto não é o único fator que influi. O projeto “Estou CãoTigo” trabalha a dimensão cognitiva, motora e emocional o nosso objetivo era a manutenção da qualidade de vida e conseguimos ir mais além, vamos continuar o nosso trabalho nesse sentido. O financiamento do Portugal Inovação Social já terminou, estamos a dar continuidade ao projeto com o apoio de dois prémios de duas entidades privadas, são elas a Caixa Social da Caixa Geral de Depósitos e através do BPI Fundação “la Caixa” Seniores.  Destaco ainda o apoio financeiro do município de Mortágua, como investidor social que nos tem ajudado imenso.

Os cães-guia são entregues de forma gratuita aos cegos e às instituições para as intervenções assistidas, para além destes apoios que outras fontes de rendimento têm?

Mafalda Vicente – A Associação tem um acordo atípico com a Segurança Social que corresponde a uma parte do nosso financiamento, ou seja, 50%. O restante valor temos de procurara através de patrocínios, donativos, ou até mesmo de angariação de fundos feitos por nós próprios e os nossos associados.

Têm outro tipo de projetos estão a desenvolver?

Mafalda Vicente – Sim, depois do trabalho desenvolvido com os idosos queremos alargar os nossos beneficiários e fazer intervenções assistidas com cães a crianças e jovens com necessidades especiais. Já apresentamos uma candidatura e aguardamos o resultado com algumas expetativas. Aliás, não posso deixar de referir que a nossa missão é mesmo esta, ao valorizar a intervenção do cão estamos a trabalhar para a qualidade de vida dos nossos beneficiários. O denominador comum de todo o nosso trabalho é o cão e vamos procurando responder a estas necessidades que existem.  

Em média qual o custo de educação de um cão-guia?

Vítor Costa – Cerca de 20 mil euros. Um cão demora cerca de dois anos a educar por pré-educadores e educadores, pessoas especializadas e com formação única em Portugal.

Um cão-guia pode entrar em todos os sítios?

Vítor Costa – Sim, aliás se em algum local o cão for proibido a entrar, o mesmo pode ser punido com multa, pois na legislação está regulamentada a entrada de cães-guia em todos os locais. O cão tem de estar devidamente limpo e asseado e sendo assim, não há problemas de o cão entrar em qualquer local. Excetuam-se sítios como cuidados intensivos e equiparáveis

São a única escola do país a treinar cães-guia, sentem de alguma forma responsabilidade?

É um desafio muito grande. Formar e educar cães-guia é uma responsabilidade enorme, procuramos sempre a excelência no trabalho desenvolvido. Com a certificação da IGDF e da ISO (International Organization for Standardization), procuramos cumprir a nossa missão com o maior rigor possível. Os cegos passam a ser autónomos e gerir a vida de forma diferente, o cão é o guia deles. Isto dá-nos uma satisfação enorme já que contribuímos para a integração das pessoas e sentimos isso cada vez que formamos uma dupla