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Artigo de Opinião: Visita ao Senhor António


Categorias: Opinião terça, 11 junho 2024

Conheci o senhor António quando cheguei a Barcouço, no domingo, dia 14 de outubro de 2018, para assumir o serviço de pároco daquela comunidade. Uma data que não esquece, por causa da tempestade Leslie.

A partir desse dia, fui descobrindo, no senhor António, através da amizade que íamos construindo, um homem bondoso, humilde, trabalhador, generoso, delicado e, sobretudo, possuidor de uma fé simples, mas profunda.

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Lembra-me que, logo nas primeiras vezes, me falou, emocionado, da dor que sentia pelo falecimento recente da sua querida esposa. «Ela era única», disse-me, várias vezes, como que a mostrar a «marca» do amor verdadeiro que sempre os uniu.

Falava-me também dos filhos. A que está na Suíça e do que vive para os lados de Anadia. Ambos, eram muito bons para ele. Embora, o seu verdadeiro encanto fossem os netos. Que alegria manifestava sempre que ia almoçar com eles. A família era um dos seus tesouros.

Frequentemente, perguntava-me onde havia festa de tarde. Gostava de ir à missa e do ambiente que envolvia tais celebrações. Em vários locais, percebi o carinho e o respeito que lhe tinham. O seu sorriso brotava do coração e facilitava o diálogo e a convivência.

Depois, gostava de partilhar a sua aventura nos trabalhos agrícolas, sobretudo nas vinhas. Tinha gosto, embora as pernas não o deixassem. A sua dificuldade em andar e a perda de forças nas pernas ia aumentando e fazia que tivesse frequentemente pequenas quedas. Tantas vezes me disse:

- Já não consigo!

O senhor António sucedeu ao pai, na missão de sacristão da Paróquia de Barcouço, e cumpriu essa missão, durante décadas. Mesmo quando trabalhava, na distribuição do pão, de noite, lá estava ele sempre presente, no serviço à comunidade. Nestes seis anos, nunca o vi aborrecido ou de má vontade. Aliás, sempre com uma palavra oportuna de ânimo ou apropriada para relativizar qualquer coisa menos certa.

No Verão passado, já fisicamente bastante decaído e animicamente em baixo, anunciou que tinha de deixar aquele serviço. Os filhos não queriam que estivesse sozinho e ele reconheceu, com tristeza. Pudera! Aquela igreja e aquela comunidade fazem parte da sua vida!

No dia da Festa da Paróquia, em Junho, agradecemos, sem nos despedirmos nem com homenagens. Ele continua a estar presente e a ser determinante na vida da comunidade, mesmo que à distância. Impressionou-me a salva de palmas, quase espontânea e demorada que todos os que enchiam por completo a igreja lhe presentearam. Ele agradeceu, em silêncio, com lágrimas que emergiam do seu coração.

Muitas vezes, falamos dele, nas reuniões e nos encontros ocasionais. Está sempre presente e sentimo-nos a ele devedores, sem saber como «pagar» a sua entrega e abnegação, o seu sacrifício e dedicação, no fundo, o seu amor a Deus e à Igreja que serviu, com tanto gosto, ao longo de imensos anos.

Em meados do mês passado, fomos visitá-lo. Eu e o padre Samelo, meu antecessor, dirigimo-nos à Palhaça, à instituição que agora o acolhe. Depois de nos perdermos, chegámos atrasados, mas ele estava à nossa espera, um pouco ansioso. Quando nos viu, chorou, num misto de alegria e de saudade. Fomos para uma sala, para conversarmos um pouco mais à vontade. Brincámos, partilhámos novidades e não falámos muito em doenças. Só lhe disse:

- Tem de ir visitar a nossa igreja de Barcouço. Está linda por dentro. Um dia destes vimos cá buscá-lo.

Os seus olhos brilharam de entusiasmo e de alegria. Mas, confessou a sua limitação:

- Já não consigo andar. Agora só de cadeira de rodas. É difícil.

O tempo da nossa visita estava a acabar, por compromissos agendados. Resolvemos tirar uma fotografia com ele. Baixinho, sem quase se perceber, disse:

 

- É a última...!

 

Levámo-lo até à sala, onde estavam os restantes utentes e demos um abraço de «até um dia destes». No regresso, eu e o padre samelo, percebemos que ali estava bem cuidado e era muito acarinhado, com a visita frequente da família, embora um pouco longe dos amigos de Barcouço. No entanto, gostei imenso de o ter visitado e de, em nome da comunidade que agora presido, agradecer, mais uma vez, o seu serviço e o testemunho da sua fé.

Ao fim do dia, voltei a recordar-me do senhor António, quando lia as palavras do Papa Francisco, no final do ano passado: “Na nossa existência, mais de uma pessoa fitou-nos com um olhar puro, gratuitamente. Muitas vezes são educadores, catequistas, pessoas que desempenharam o seu papel além da medida exigida pelo dever. E eles fizeram surgir em nós a gratidão. A amizade é também um dom pelo qual devemos estar sempre gratos.” Sim! Com efeito, como comunidade cristã, estaremos sempre gratos ao senhor António, por tudo o que foi e é.

Já agora, nestes tempos de festas e festivais, um pouco por todo lado, onde os pavoneios e as excentricidades balofas procuram mascarar a incapacidade de ver e viver a realidade, transformando-a para melhor, fica o exemplo deste homem e de imensas pessoas que forjam o bem, nas nossas comunidades, com verdade, simplicidade e gratuidade. Estas não confundem as ideias e ideologias, com o amor, pois são puros e livres de coração.