A noite dá lugar ao lusco-fusco e depois a manhã abre-se de luz e tudo o animal selvagem procura no bosque mais alto o refúgio e a protecção. Deixo-me ficar olhando o nascer que transforma a escuridão em alvorada e a alvorada em dia e o negrume em tons de verde que vão clareando pouco a pouco em diversas matizes. Em toda a paisagem que surge há paz e serenidade, e o silêncio abrange todo o mundo que nos rodeia como mágica aurora natural. Apenas o ruído de águas saltando nos baixios dos seus leitos rompe em sons tilintantes. Estamos nos mil e quatrocentos metros de altitude e a noite arrefeceu o ar que se respira. Às sete toma-se o café. Leite fresco, pão, manteiga, queijo, spek, salame, cereais. Depois vestimo-nos de cebola. Como diz Ernesto, na montanha somos como a cebola, por isso visto um polo interior, uma camisa, uma camisola de lã. Coisas que vou despir quando começar a subida para tornar a vestir quando estacionar nos cumes mais elevados, para despir de novo quando descer ou quando a montanha mandar. Lá em cima manda ela e brincar com a montanha pode significar erro ou falha que nos conduza ao perigo ou á morte. Colado às calças vou eu quando desço do teleférico a dois mil e cem metros e passo para o de cadeirinha para chegar aos dois mil e quinhentos. A cadeira é uma haste ligada ao cabo superior, completamente aberta e os pés, praticamente, pendurados no vazio. É o batismo de alpinista. Sobe-me o estomago ao pescoço e fecho os olhos para acalmar o equilíbrio e o ânimo. Por baixo, corre-me a montanha nua, os rochedos, as árvores, as torrentes, ali na ponta das minhas botas às quais acrescentei meias de maior grossura para almofadar e acomodar o frio. Chegamos. Rafael, meu companheiro, vai contente. Ri nos seus poucos anos de encantamento enquanto o pai o adverte dos perigos com atenção. Na altitude acabaram as árvores. Estamos no meio de penedos, mas falta ainda até aos três mil e seiscentos metros onde não vou chegar por caminhos ingremes de abismos e penedias até ao glaciar do Dioz e ao abrigo de Padova a três mil e duzentos metros de altura. Daí para cima, só para experts e demora dois dias a viagem. Abre uma manhã de sol esplendoroso. São nove horas e o frio ainda subsiste nas alturas.
É grande a amplitude e preciosos os agasalhos, a cebola. Fazemos contas para acertar etapas abrindo os riscos dos mapas serpenteando de percursos de tracejado, grosso, fino, intervalado. Não posso ir muito mais acima a pé, embora me sinta perfeitamente bem no que respeita ao coração. Não tanto aos músculos, doridos por esforços anteriores. Mas vamos subindo juntos até ao possível. Depois derivo com o Rafael e começamos a descer. Temos que controlar bem as horas e só podemos subir até ao limite folgado de tempo para voltar com dia ainda á frente e com margem para percalços inesperados. Recolocamos mochilas com o almoço às costas. São sanduiches e água para prosseguir. Vou á frente com o Rafael para marcar a marcha e o caminho empina-se rapidamente para um grau de dificuldade máximo. Vamos devagar neste traçado até às onze horas da manhã. Não podemos brincar com a montanha, repete o Ernesto que tem um bastão alpino com dezenas de emblemas a significar subidas em sítios todos diferentes. Também comprei um, o meu primeiro e um emblema de Pejo, a comuna onde estacionamos, em Pejo Fonti, umas termas, a setenta quilómetros de Trento. Atravessamos uma ponde pendurada sobre um desfiladeiro onde corre em cascata um manancial de água dos cimos. Passa um de cada vez agarrado a dois cabos de aço estendidos de um lado ao outro, devagarinho, cuidadosamente. O Rafa vai á minha frente, seguro-lhe o corpo pela gola da camisita encarnada pronto a agarrá-lo ao primeiro sobressalto. Duas marmotas enfiadas em casacos brancos de inverno escondem-se rapidamente entre calhaus. Desaparecem. Dois falcões alpinos sobrevoam-nos, subimos duzentos metros e é quase meio-dia. Rafa queixa-se com fome e estabelecemos as doze e meia como meta da refeição. Desprendem-se meia dúzia de pedras mais á frente quase no meio do caminho. Uma pequena avalanche que acontece. Vamos comer e iniciar a descida… Peio Termas, algures no tempo.