Breve história de um roubo à beira do poço
A “história” é conhecida, e é contada com frequência em aulas de jornalismo.
Começa num dia bonito de sol, quando a Verdade e a Mentira se encontram à beira de um lago. A Mentira convida a Verdade para entrarem juntas na água cristalina e desfrutarem da sua frescura revigorante.
No início, a Verdade desconfiou e recusou a proposta. A Mentira, no entanto, entrou na água e insistiu: está muito refrescante! Vem!
Mesmo que com medo, a tentação era forte e a Verdade deixou-se convencer; despiu-se e mergulhou nas águas. Sem perder tempo, antes mesmo que a Verdade se levantasse do primeiro mergulho, a Mentira saiu rapidamente do lago, vestiu as roupas da Verdade e fugiu. Ao ver o que acontecera, a Verdade ficou furiosa e decidiu ir atrás da traidora, mesmo que nua, como encontrava; queria recuperar as suas roupas e denunciar a Mentira ao mundo.
Ao longo de seu percurso, quando procurava explicar às pessoas o que se passara, a Verdade foi recebida com hostilidade em vez de compreensão e apoio. Sem darem a mínima importância ao que a Verdade lhes dizia, as pessoas olhavam-na escandalizadas e, com desprezo, negavam-lhe ajuda. Proferiam palavras de ódio por verem a Verdade naquele estado — nua, atrevida, provocadora. Conta-se assim que, incompreendida e humilhada pela falsa moral pública, a Verdade voltou para o lago e por lá desapareceu para sempre.
Desde então, é a Mentira que vagueia pelo mundo. Com as roupas da Verdade, engana e confunde as pessoas que se dão ao trabalho de a questionar. Outras pessoas preferem conviver com a mentira disfarçada a aceitar a imagem pouco decente da verdade.
Reconstituída de forma livre para este texto, a “história” pertence ao repertório de fábulas da cultura Ocidental e inspirou, entre outros, um dos quadros mais famosos do pintor francês Jean-León Gérôme. Em 1896, Gérôme pintou o quadro “A Verdade a Sair do Poço” (La verité sortant du puits), que retrata o exato momento em que a Verdade deixa o poço, completamente sem roupa, mortalmente arrependida por ter confiado na Mentira, e indignada com a traição que acabara de sofrer. Uma rápida pesquisa no google dará a reprodução da tela.
Pode parecer estranha a ideia do poço – ninguém hoje toma banho num poço. A ideia do poço vem de um pensador grego antigo, Demócrito, que, na sua sabedoria, reconhecia que: “na realidade nada sabemos, porque a verdade está no fundo do poço.” A Verdade, filha do Tempo (de Cronos, para os gregos, ou ainda de Saturno, para os romanos), é a mãe da Justiça e da Virtude. O que nos mostra o quanto estamos dependentes dela para formamos juízos, para tomarmos decisões, para definirmos as nossas ações, e por aí em diante. E que mostra ainda a falibilidade desses mesmos juízos, opiniões, etc.
A obra de Gérôme é uma rica alegoria para pensarmos questões centrais dos dias de hoje. Como o ressurgimento dos populismos, um pouco por todo o mundo, que procuram confundir mentira e verdade, apostando na desinformação e nas meias-verdades como mecanismo de ação política. Como as manobras de logro preparadas de forma quase científica por especialistas – veja-se o escândalo Cambridge Analytica.
Esta estratégia, que desestabiliza sistemas políticos por todo o mundo, não é nova, e atua tanto a nível global como em contextos de âmbito regional ou local. No seu normal, contamina as nossas conversas do dia-a-dia. Atualmente, com o declínio da importância do jornalismo e o crescimento do poder das redes sociais enquanto fonte de informação, tem um poder de mobilização ainda maior.
Nada de novo. O aviso está no quadro de Gerôme: cabe-nos ser capazes de escrutinar quem se esconde por detrás das roupas da Verdade.