Sabemos que uma agressão sexual, seja qual for a sua natureza, constitui um acontecimento frequente na vida de muitas crianças e adolescentes. Deixa marcas dolorosas, com graves malefícios para o seu desenvolvimento e saúde. Num tocante relato ao Jornal Expresso, Suzanna Nakryiko, psicoterapeuta ucraniana, refugiada em Portugal, disse que a somatização dos efeitos da violência exercida sobre crianças de 12 a 14 anos, violadas por soldados russos, tornou-as precocemente grisalhas. Como se, num ápice, passassem da infância à velhice.
Segundo dados da Polícia Judiciária, há uma média de 2.400 processos de abusos sexuais de menores todos os anos. E, estou certa, muitos outros casos existem e não são denunciados, pois é um fenómeno, ancestralmente, vivenciado em segredo pelas vítimas e marcado pelo secretismo que as oprime e culpabiliza, e protege os abusadores, que contam com o medo da criança em se expor. Culpar as crianças ou adolescentes pelo abuso sexual de que foram vítimas, é hediondo. Um abusador nunca é um bom pai ou profissional, e não é um bom ser humano. E não pode haver qualquer desculpa para o abuso. Por isso os abusadores/pedófilos são legal e criminalmente imputáveis.
Afirmar que as crianças podem estar associadas a um tipo de interesse ou desejo sexual, atribuí um papel à criança numa parafilia (perversão sexual) que lhe é totalmente alheio. O facto de alguns homens sentirem desejo sexual por crianças, não pode ter qualquer impacto nestas, sob pena de estarmos a desculpabilizar a pedofilia e o abuso sexual, e a minimizar a gravidade destes crimes. A dor das crianças abusadas sexualmente, não mente. Remetidas ao silêncio, quantas vezes assediadas dentro da própria casa, coagidas com o “não contes a ninguém, é o nosso segredo”. Sim, porque os abusadores contam com o medo da criança em se expor.
A relação de proximidade e confiança com a vítima, é favorecedora da prática de tais ilícitos, mas não se esgota no seio familiar. Fora desse contexto, ocorre, por norma, com pessoas que a criança conhece, como sejam profissionais e elementos/responsáveis de instituições da comunidade, que com ela lidam, indivíduos insuspeitos e socialmente bem inseridos. Os criminosos sexuais conseguem agir impunemente durante décadas, talvez mesmo durante toda a vida, enganando todo o tipo de pessoas, em todo o tipo de lugares.
“Nunca encontraremos um abusador de menores que não seja um mentiroso experiente, mesmo que a sua arte não seja nata” (Anne C. Salter, in “Pedofilia e outras agressões”, 2003). E, quando se descobre, as pessoas têm dificuldade em aceitar o abuso e a família tem tendência a encobrir esse crime horrendo. Ignorar uma revelação válida pode ter consequências desastrosas. No mínimo, aumenta a confiança do criminoso na sua capacidade de passar impune. E gera um sofrimento maior nas crianças, que perdura por anos e deixa sequelas para toda a vida. Quando se é uma criança violentada, percorre-se, quase sempre, a vida toda de mão dada com essa criança. Em Portugal, o caso da Casa Pia veio a levantar o véu que encobre esta realidade infame que é o abuso sexual de crianças, verificando-se uma rede enorme e extremamente poderosa de envolvidos, em que eram abusadas à luz do dia, crianças que o Estado tinha obrigação de abrigar e proteger. Estas pessoas encobrem-se umas às outras, porque se um é preso, são todos presos. Não querem que ninguém saiba e muitos duvidam, até hoje, da culpa destes “senhores” socialmente bem-posicionados, alguns dos quais condenados.
A desumanidade do fenómeno torna-se mais grave e escandalosa na Igreja Católica, pois está em contradição com a sua autoridade moral e a sua credibilidade ética. Mais do que isso, como podemos constar a nível internacional, mas também em Portugal, aquando da divulgação dos resultados da Comissão Independente para a Investigação dos Crimes na Igreja Católica, elementos da hierarquia encobrem-se e protegem- se uns aos outros. O sofrimento das crianças não surge no centro do discurso. Apenas a defesa da boa imagem da Igreja.
Após anos de especulação, estes atos de violência indescritíveis estão à vista e as vítimas podem falar. E vão dar força a muitas outras para que falem. Contudo, é importante que a Igreja prove com atos o seu arrependimento e o que está disposta a fazer para reduzir ao máximo as circunstâncias que permitiram os abusos. E isso só conseguirá com a transparência, aproximando a instituição à sociedade e aos valores civilizacionais próprios das democracias atuais.