Já a tenho visitado algumas vezes. Vive só, na sua casita – como costuma dizer –, sempre arrumada e limpa, mesmo que com muito esforço, pois o seu corpo já não tem as forças de antigamente! O peso dos anos e as doenças que eles trazem fazem-se bem notar. Depois da morte do marido, há anos, foi quebrando, embora sempre resistente. Vou percebendo, visita após visita, como as limitações vão aumentando e vai diminuindo a sua autonomia. Mas a doçura e a delicadeza do seu trato parece ser cada vez maior. A sua lucidez e inteligência são impressionantes, além de possuir uma memória invejável.
Naquele dia, embora sem muita disponibilidade, resolvi parar. Quando estacionei o carro, vi que ela andava a varrer, com dificuldade, a entrada da porta. Logo que me viu, encostou a vassoura e tirou a bata, e, com um sorriso amável, diz:
- Eu não acredito. É o senhor padre! Disse que vinha cá antes da Páscoa e, não tarda, estamos no Natal.
Ao terminar a frase, deu uma gargalhada e abriu os braços para me saudar. Depois, continuou:
- Estava a brincar, senhor padre! Nem imagino o que seja a sua vida e há sempre gente que precisa mais do que eu. Como está?
Respondi-lhe que estava bem e devolvi-lhe a pergunta.
- Cá estou com as mazelas da idade. As dores não me largam, mas vou andando. Ainda faço a minha vida, já só não consigo ir ao quintal.
Vi o seu semblante ficar entristecido. Ela justificou:
- A minha vida foi sempre no trabalho no campo. O meu homem que Deus tenha e eu tivemos um viver duro, de sol a sol, para educar os filhos e ajudá-los a fazerem as suas vidas. Graças a Deus, estão todos bem! Mas, a minha avó dizia que «trabalhar a terra era ajudar Nosso Senhor a dar-nos o pão de cada dia»! Agora, já não O posso ajudar, mas Ele é bom, pois também não me falta com o pão.
Estava encantado com a profundidade do que acabava de me dizer, de forma tão simples e convicta. Entretanto, perguntei-lhe pelos filhos e netos.
- Lá andam com muito trabalho. Uma em França, outro em Lisboa. Ligam todos os dias e, uma vez por mês, o que está cá, em Lisboa, vem visitar-me com a minha nora e com as filhas. Estão tão crescidas e bonitas. São trabalhadoras. Agora, só falta casarem e todos terem saúde. A que vive em França deve chegar por meados de agosto. Como sabe, tem um casal. Estão já formados e a trabalhar também.
Notei que, ao falar-me deles, sorria, como que a mostrar-me que eles lhe enchiam o coração. Depois, conversámos outras coisas, sobretudo, destes tempos e do estilo de vida que, hoje, muitos têm. A certa altura, disse-me:
- Senhor padre, como esta gentinha, hoje, pode viver! Vivem como se não houvesse amanhã! Vivem a correr. Vivem no ar. Não sonham como a gente sonhava, com o trabalho é certo, mas com sentido. Não acha?
Em certa parte, dei-lhe razão. Mas, quis afirmar-lhe que o exemplo de pessoas como ela, com a idade que tem, é que são inspiradores para a mudança. Disse-lhe mesmo que temos muito para aprender com os mais velhos. Ela a sorrir, contestou-me:
- Como é que os mais velhos podem ser exemplo se os metem a todos nos lares, ou não lhes dão a devida atenção. Eu, graças a Deus, não me queixo. Mas, é uma tristeza. Só querem saber dos velhos por interesse, mas não lhes dão valor. Eu sei o que vejo!
Mais uma vez, concordei com ela, em certa parte. Mas, com o tempo a passar, perguntei-lhe para rematar:
- A senhora, com a idade que tem, ainda tem sonhos?
Ela deu uma gargalhada e respondeu-me.
- Senhor padre, quando deixamos de ter sonhos, a nossa vida fica insossa. Os meus sonhos são agora os sonhos dos meus netos, para que se casem e tenham umas famílias lindas, com filhos e, sobretudo, com saúde. Deus vai ajudá-los.
Fascinado e feliz, despedi-me dela, prometendo passar antes do Natal. Ela riu de novo e agradeceu a visita. No carro, regressando a casa, já atrasado para atender uns noivos, lembrei-me que estava perto o «dia dos avós» e a festa de São Joaquim e Santa Ana. Recordei a mensagem do Papa para os avós, de maio deste ano. Nela denuncia que a “solidão e o descarte tornaram-se elementos frequentes no contexto em que estamos imersos”. Afinal, aquela senhora que tinha acabado de visitar estava cheia de razão!
Mas nessa mensagem, o Papa também afirma que diante de um «não me abandones», é possível responder «não te abandonarei!», cuidando “de um idoso ou simplesmente demonstrando diariamente solidariedade a parentes ou conhecidos que não têm mais ninguém”. Manter-se junto aos idosos, segundo o Papa, é reconhecer “o papel insubstituível que eles têm na família, na sociedade e na Igreja”, sabendo que, em consequência, receberemos “muitos dons, tantas graças, inúmeras bênçãos!”.
Já agora, num tempo de faz de conta e das ditaduras de modas, opiniões e ilusões, que o realismo e sabedoria dos nossos «avós», ajude a todos a sonhar, com trabalho e dignidade! Aprendi, mais uma vez, isso mesmo, naquela visita.