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O mito de Dédalo e Ícaro: a ilusão da liberdade


tags: Padre Rodolfo Leite Categorias: Opinião quarta, 18 setembro 2024

Nestes tempos tão esquisitos quanto complexos, quer a nível da sociedade quer dos comportamentos humanos, e ao recomeçar um «novo ano», depois das férias, recordei-me de Dédalo e de Ícaro, personagens da mitologia grega. Convém contar a lenda brevemente.

Ícaro era filho de Dédalo que era um dos homens mais criativos e habilidosos de Atenas, conhecido pelas suas invenções e pela perfeição dos seus trabalhos manuais, simbolizando a engenho humano. Um dos seus maiores feitos foi o Labirinto, construído a pedido do rei Minos, de Creta, para aprisionar o Minotauro. No entanto, por ter ajudado a filha de Minos a fugir por um amor proibido, Dédalo provocou a ira do rei que, como punição, ordenou que ele e o seu filho Ícaro fossem presos no Labirinto.

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Dédalo sabia que a sua prisão era intransponível, e que Minos controlava o mar e a terra, sendo impossível escapar por estes meios. Entretanto, lembrou-se que o rei não controlava o ar. Então, pensou em fazer umas asas, juntando penas de aves de vários tamanhos, amarrando-as com fios e fixando-as com cera, para que não se descolassem. Foi moldando tudo, com as mãos, para que estas asas se tornassem perfeitas, como as das aves.

Estando o trabalho concluído, o artista, agitando as suas asas, viu-se suspenso no ar. De imediato equipou também o seu filho, com semelhantes asas, ensinando-o a voar. Por fim, antes do voo final, advertiu Ícaro de que deveriam voar a uma altura média, nem tão próximo do sol, para que o calor não derretesse a cera que colava as penas, nem tão baixo, que o mar pudesse molhá-las.

Eles, primeiramente, sentiram-se como deuses que haviam dominado o elemento ar. Ícaro deslumbrou-se com a bela imagem do sol e, sentindo-se atraído, voou na sua direção, esquecendo-se das orientações do seu pai. A cera das suas asas começou rapidamente a derreter e logo caiu no mar. Quando Dédalo percebeu que o seu filho não o acompanhava mais, gritou: “Ícaro, Ícaro, onde estás?”. Nisto, viu o seu filho e as penas das asas flutuando no mar. A sofrer, pegou no seu filho morto, levando-o seguro para terra, onde enterrou o corpo.

Este mito de Dédalo e Ícaro tem inspirado a sociedade, ao longo dos tempos, desde as artes, à música e ao teatro. Pai e filho, nesta história, representam tanto as limitações e as fraquezas, quanto a capacidade criativa e os sonhos do ser humano. Enquanto jovens, temos grandes sonhos e projetos em mente, buscamos realizar algo extraordinário e que alimente a nossa liberdade. Tentamos superar todos os obstáculos, contudo, quando perdemos o bom senso, se somos imprudentes e vaidosos nas nossas acções, podemos alterar tudo nas nossas vidas, assim como o pai e o filho representados no mito grego.

Dédalo, no primeiro momento, em virtude dos seus talentos excepcionais, representa os caprichos de uma mente inflada pelo ego e pela vaidade, que logo dão vez à inveja, que aprisiona o seu espírito criativo. No segundo momento, a punição pelos seus atos extremados. Dédalo, depois, muito mais maduro e sábio, liberta-se da situação opressora – ego, vaidade e inveja que carregava dentro de si –, e volta a ser criativo, ciente de que a arte é a essência do criador e a sua mais ousada criação – as asas – permitiu que ele e o seu filho escapassem da prisão.

Ícaro, jovem, representa a ambiguidade da descoberta inocente, que o leva a ser imprudente e negligente pelo deslumbramento, pensando que era tão poderoso quanto um deus, não reconhecendo os seus limites, nem mesmo os percebendo; no fundo, é a falta do autoconhecimento. Realiza algo extraordinário, mas rompe com os limites do criador, seu pai, e ignora os seus conselhos. Voa sem refletir, motivado pela sensação de liberdade. No mito, Ícaro, nem sequer sentiu a dor fatal, pois estava asfixiado pela liberdade insensata. Por sua vez, o pai, muito sábio pela experiência, realiza um voo perfeito, representando o amadurecimento do ser humano.

Neste mito de significado tão profundo e atual, Dédalo é a mente criativa, mas também é o labirinto, a confusão, a complicação humana de lidar com sentimentos baixos que envenenam a vida, ao mesmo tempo que evolui, e representa a redenção, o amadurecimento muito tardio, e, portanto, também representa a dor. Ícaro é a inocência abraçada na liberdade sonhadora, as ambições demasiadamente elevadas que o levam para o resultado desastroso e trágico.

 

Já agora, como síntese, que não esqueçamos nunca que o jovem Ícaro, no seu voo para a liberdade «absoluta e despreocupada», aproximou-se cada vez mais do sol, sem perceber que as asas com as quais subia, em direção ao céu, eram de cera, limitadas, frágeis... A queda desastrosa e a sua morte são a consequência da sua ilusão. Aliás, este mito antigo tem uma lição de valor permanente. Na vida, há ilusões nas quais não se pode confiar, sem correr o risco de consequências catastróficas, para si e para a existência dos outros. Acho qua anda por aí muita gente esquecida disto!