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Um amor excêntrico…


tags: Padre Rodolfo Leite Categorias: Opinião segunda, 30 setembro 2024

Foi depois da missa vespertina da Mealhada. Tinha passado em casa de uma pessoa, para tratar de um assunto. No regresso, reparo numa ambulância do INEM, parada à porta do prédio, onde reside. Abrando e reparo que era ela, rodeada de gente, com os bombeiros, sempre solícitos, a ajudá-la a levantar-se. Havia marcas de sangue no chão.

Entretanto, fui estacionar o carro, aproximei-me para saber o que se tinha passado. Ela, já deitada na maca da ambulância, reconheceu-me e disse o meu nome. Embora abalada fisicamente, parecia-me perfeitamente consciente. Os bombeiros faziam as medições próprias dos protocolos de urgência e faziam-lhe perguntas, às quais respondia. A família, preocupada, procurava organizar as coisas para o seu acompanhamento até ao hospital, em Coimbra.

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Minutos antes, tinha estado com ela e com o marido, na missa. Sempre simpática e de um trato doce, tinha-a cumprimentado, parecendo-me estar bem. Mas, no regresso a casa, a pé, como gosta de fazer, escorregou e caiu, ferindo a cabeça. É que os seus mais de oitenta anos já não lhe permitem a agilidade de outros tempos.

A certa altura, ouço-a dizer, com uma voz, onde se percebia que estava com dores:

- O meu marido tem sopa, no frigorífico, para o jantar.

Repetiu mais algumas vezes a mesma afirmação, para que a nora e o filho a ouvissem. A sua preocupação não era necessária, pois tudo estava a ser tratado, cuidadosamente, por eles. Com tudo tratado, a ambulância segue para Coimbra.

Mais tarde, soube, pelo telefone, que a queda não tinha provocado nada de grave e tudo estava bem. Tinha levado dois pontos, no golpe provocado pela queda. Faltava só mais um exame, mas nada de especial. Regressou do hospital de Coimbra, às 4 da manhã.

No domingo, na missa das 10:15 horas, reparo que ela está presente, acompanhada por um familiar. Fiquei surpreso! Dirigi-me a ela, para saber como estava. Respondeu, prontamente:

- Estou bem. Agora é o tempo!

Depois, interroguei-a se não deveria estar a descansar, tendo vindo tão tarde do hospital, e já tinha participado na missa vespertina. Ela, com convicção, disse-me:

- Não podia deixar de vir à missa. Hoje, o meu filho faz anos e quero agradecer a Deus…!

Sorri e nada mais perguntei.

No final do dia, lembrei-me da D. Licínia. Durante imensos anos, foi professora, transmitindo saber e valores, a muitas gerações de rapazes e raparigas desta região. Depois, sempre empenhada na vida da comunidade cristã, foi catequista muitos anos. Agora, tem uma preocupação constante com as necessidades dos outros, fazendo tudo de forma muito discreta, sem ninguém o perceber.

Mas, o que me encantou, verdadeiramente, foi a sua expressão de amor. No meio das dores, na maca de uma ambulância, e atordoada pela queda, teve a preocupação com o jantar do seu marido – já fizeram 62 anos de casados –; depois, ao outro dia, cansada de uma noite nas urgências, sem dormir, estava na missa para rezar pelo seu filho. Incrível!

Nestes tempos, onde se afirma o amor egocêntrico – «primeiro, tenho que me amar a mim mesmo e ser amado pelos outros» –, fico sempre encantado por quem vive um amor excêntrico. Sim! O amor pode e deve ser excêntrico. Aquele amor que sai de si-mesmo e se centra nos outros; aquele amor que não quer ter em si mesmo o seu centro, mas naqueles que ama; aquele amor que se faz entrega, não esperando nada mais que o bem daqueles a quem se ama.

Já agora, só um amor excêntrico vai até ao fim e, afinal, é isso que todos nós precisamos, como pessoas, quando amamos e somos amados de verdade, que seja para sempre e que implique tudo e toda a nossa vida. Mais. Só assim, poderemos ir saboreando a bela experiência da felicidade, para além das dores e dos cansaços do nosso viver.

Obrigado, D. Licínia, pelo testemunho.