Os dias vão passando, mas este assunto não deixa de me inquietar. Um zum-zum que veio de um certo grupo político, de um conjunto de pessoas que deve decidir sempre a favor daquilo que é melhor para nós. Mas de onde, veja-se bem, saiu a brilhante ideia de discriminar meninos e meninas cujos pais estão desempregados. O plano é simples: recambiar as crianças para o fim da fila no acesso às creches. Um disparate que ainda não se vê no continente, mas que já faz parte da realidade nos Açores. Podemos personificar a coisa. Os pais da Joana estão desempregados. Segundo uma nova lógica em que o desemprego parece ser hereditário, o último lugar da fila é para ela. O Eduardo, um sortudo, é filho de advogados. Pois bem, tem direito a um lugar na creche - como se ser filho de advogados agora fosse um mérito da infância. À Joana, coitada, falta o que comer, mas quem sabe se isso não a torna mais "resiliente" e mais “forte” - as palavras da moda que mostram o lado bom de qualquer injustiça. Por outro lado, o Eduardo não passa fome, mas terá à disposição um par de refeições completas por dia. É assim que o novo critério meritocrático funciona. A Joana? Sancionada. O Eduardo? Beneficiado. Não por serem crianças com capacidades ou comportamentos distintos, mas porque os pais do Eduardo trabalham - e os da Joana não. Como se comer adequadamente, conviver com os seus pares e ter direito a um conjunto de valores essenciais seja perigoso para quem é filho de desempregados, mas benéfico para quem tem pais que trabalham. Como se nada mais dissesse sobre o potencial de uma criança do que o emprego dos seus pais. No mundo perfeito de algumas mentes iluminadas, a Escola vai-se tornando um espaço de seletividade sócioeconómica. Deixámos de lado a utopia de que era um lugar onde todos, ricos ou pobres, tinham a oportunidade de crescer. De aprender a ler, a escrever, a sonhar. Agora, é mais uma extensão da realidade fria lá de fora, onde se prepara a elite dos que têm e se marginaliza os que não têm. O que mais me surpreende é a coragem, a audácia, a falta de vergonha. A mera consideração da ideia de tornar a Escola, essa instituição tão essencial para a formação moral, ética e cidadã, num espaço cujo acesso se faz tendo em conta a grossura da carteira dos encarregados de educação. Sei que o leitor compreende a pertinência deste desabafo. Defender a qualidade e a acessibilidade da Escola para todos, sem distinção, é a única saída para uma sociedade que se quer evoluída. Só assim podemos fazer dela o lugar onde as diferenças estruturais são abatidas em prol de algo muito mais nobre: a vontade de ser mais qualquer coisa, de sonhar com um futuro maior. Um sítio onde entramos pequenos, mas de onde podemos sair gigantes - do tamanho dos nossos sonhos. Onde as oportunidades não são apenas para quem pode pagar um lugar na fila da frente.