As cores vivas do racismo em português
O esplendor de Portugal, como canta o hino, reside nos descobrimentos e no colonialismo subsequente, considerado o nosso período glorioso. Na narrativa colorida que nos foi contada nas escolas, o país surge como o "bom colonizador", que nunca exerceu sobre os povos colonizados a violência que outros povos exerceram. Raramente visto como um sistema racista, o colonialismo português não era questionado como tal.
Eduardo Lourenço, pensador e ensaísta português, disse-nos que a consciência colonialista portuguesa continua por resolver, num percurso iniciado há mais de 500 anos, alertando para a necessidade de acabar com o “psicodrama de raiz africanista em que todos participámos ou participamos para exorcizar os demónios de uma aventura histórica mal terminada com aparência de bem terminada ou vice?versa” (in Do colonialismo como nosso impensado).
Até hoje, nunca existiu um museu dos descobrimentos e da escravatura em Portugal, não nos é ensinado na escola que existiu um apartheid em Angola e em Moçambique. Insistimos num olhar benevolente sobre um Portugal que não hesitou em promover o trabalho escravo até 1974 e acarinhamos a narrativa do “bom colonizador”, que não discriminava porque se integrou com as populações locais, quando, na verdade, subjugava, violentava e obrigava essas pessoas a despirem-se da sua identidade africana.
Quer a escravatura, quer o subsequente tráfico, já eram práticas desde a Antiguidade Clássica em várias latitudes e advindo, sobretudo, da conquista de novos territórios e da subjugação dos povos que lá viviam. Portugal inaugurou o transatlântico tráfico de escravos que se iniciou no século XVI, de que foi pioneiro e beneficiário principal por cerca de dois séculos. E não foi apenas pioneiro no tráfico de um continente para outro, desenvolveu a atividade levada a uma grande escala. Em poucos anos, uma insípida atividade ligada ao tráfico floresceu, em que entraram outros povos europeus com mais capital e engenho do que nós e que nos superaram nesse negócio infame. Caçavam os negros como animais em África, em seguida carregavam-nos em barcos para atravessar o Atlântico.
Com a estimativa situada nos cerca de 15 milhões de seres desumanizados e objetificados, em cerca de quatro séculos e até à proibição desse desprezível comércio em meados do século XIX, provocou o desmantelamento de famílias e de culturas inteiras. Sem esquecer o genocídio das populações nativas no continente americano. Portugal, enquanto coletivo, tem ainda a fazer um longo caminho de mea-culpa. Após a abolição da escravatura, gerações de filhos de escravos, escravos continuaram, deixaram de ter o estatuto jurídico, para ter estatuto material de escravos, por gerações e na prática. Na colónia de Angola, no Censo de 1950, existia a “ficha de recenseamento de população não civilizada”.
Na verdade, a realidade é dura e vai beber a fontes inquinadas da história. A história enquanto área do saber serve igualmente à edificação de uma imagem, de uma narrativa que se poderá encontrar mais ou menos ao serviço dos interesses de terceiros, confundindo-se, assim, com propaganda. E propaganda será enquanto a versão dada de uns acontecimentos se sobrepor à de outros, quando, à custa dos benefícios obtidos, se alia a omissão do que poderá ser considerado menos abonatório da narrativa oficial.
O racismo em Portgal não é discutido, porque como cultura acreditamos que não necessita de discussão. Mas negar o racismo, já é uma confirmação da sua existência. Reconhecer que somos uma sociedade racista é o primeiro passo para modificar pensamentos e atitudes arbitrárias. Quando nos dizem “agora tudo é racismo”, é preciso ter consciência que sempre foi, só que antes era silenciado. E, seguramente, o resto do mundo não aceita a nossa narrativa. Eles sabem a verdade.
Todas as minorias vitimizadas - que só com o avançar dos tempos conseguem ganhar alguma posição e visibilidade - merecem o nosso respeito. O facto de, ainda hoje, não existir correspondência entre o número de negros residentes e o número de negros em lugares de liderança na sociedade é, no mínimo, esclarecedor. A ausência de representatividade de uma fatia que podemos considerar expressiva na sociedade reflete um sistema que discrimina pela cor da pele.
Essa herança não se perde pura e simplesmente. E, em momentos de maior tensão social ou de polarização nos posicionamentos da vida em comum, surge sempre da forma mais violenta possível. E temos acontecimentos bem próximos que o comprovam: o assassinato de Odair Moniz. O peso de uma história colonial negada desponta no racismo traduzido na atuação das polícias e de outras forças de segurança, mas também nas políticas de habitação e segregação, nas leis de nacionalidade, no discurso de ódio de crescentes movimentos sociais e políticos, da representação do país e da sua história.