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Desinformação 1 - 0 Direitos Fundamentais


tags: Gil Lourenço Ferreira Categorias: Opinião terça, 14 janeiro 2025

Não são precisos mais do que escassos segundos para que um simples post nas redes sociais alcance milhões de utilizadores. Vai daí e essa publicação, cuja veracidade até nos é desconhecida, molda opiniões, influencia decisões e branqueia barbaridades. Este acesso instantâneo ao conteúdo devia ser uma força democratizadora, mas muitas vezes é o oposto: uma ferramenta para disseminar desinformação, dividir sociedades e descapacitar os cidadãos.

Dois acontecimentos recentes ilustram como as fake news podem não só alimentar preconceitos, como também legitimar medidas que ameaçam direitos fundamentais. A rusga no bairro do Martim Moniz, realizada sob o pretexto de reforçar a segurança, foi amplamente debatida nas redes sociais. Em coisa de minutos, aos montes e aos pontapés, surgiram rumores de que o bairro seria um "epicentro" de criminalidade. Um fenómeno sempre responsável pela elevada presença de imigrantes, dizem os twitteiros e os facebookeiros - e os tiktokers, já agora. Mas não. Os dados oficiais e estatísticos, aqueles que verdadeiramente importam, não o corroboram. Estas alegações, que ganharam tração em plataformas digitais, perpetuam estereótipos que marginalizam comunidades inteiras. E desviam o foco de problemas estruturais mais amplos, como a exclusão social e a falta de oportunidades.

Agitada como foi, a semana trouxe-nos ainda um outro assunto: a aprovação de uma medida que contraria, pela primeira vez, a universalização do direito à saúde. Argumentos que circulam online dizem-nos que o SNS está “sob pressão”. Claro que os responsáveis voltam a ser eles, os estrangeiros que, vejam bem (!), não ultrapassam 1% dos utilizadores do Serviço. Esta alegação, desprovida de base factual, alimenta um clima de hostilidade para com os imigrantes. E ignora que a sobrecarga no Serviço Nacional de Saúde decorre de questões como falta de financiamento, escassez de profissionais e gestão ineficiente - algo que realmente pode ser mudado.

A conexão entre estas situações e as fake news é evidente: a desinformação cria terreno fértil para que decisões políticas sejam justificadas sob premissas erradas. E o impacto é devastador. No caso da rusga no Martim Moniz, reforçam-se preconceitos que isolam ainda mais as comunidades migrantes e que minam qualquer esforço de integração. No que toca à saúde, a retirada da universalidade no acesso não só viola princípios básicos de equidade, como também contraria estudos que mostram que sistemas de saúde inclusivos são mais eficientes e sustentáveis. É preciso perguntar: quem ganha com a disseminação de desinformação? Segue aquela que julgo ser a resposta correta: os que pretendem concentrar o poder, dividir a sociedade ou desviar a atenção de temas realmente críticos.

Ao alimentarem narrativas simplistas, que polarizam o debate público e que dificultam soluções complexas e inclusivas, as fake news enfraquecem a democracia. E mais do que nunca, devemos combatê-las. Teimoso, aponto mais uma vez para a literacia mediática; de outra forma, como poderão as pessoas distinguir factos de opiniões, informação de desinformação, condutas maliciosas de contributos válidos?

Os acontecimentos de que vos falei são um alerta. A manutenção de direitos fundamentais, como a segurança e a saúde, depende não somente da integridade das instituições, mas também de um debate público pautado pela verdade. Num mundo cada vez mais conectado, garantir que a desinformação não corrói as bases da democracia é uma responsabilidade que nos cabe a todos.