Digressão traz Samuel Úria à Mealhada

Samuel Úria está de regresso aos palcos com uma nova digressão que arrancou em fevereiro e que o levará aos coliseus de Lisboa e Porto. Antes disso, o músico de Tondela sobe ao palco do Cineteatro Messias, na Mealhada, no próximo dia 26 de abril, às 21h30, para um concerto que promete ser especial — não só para o público, mas também para o próprio artista.
Embora esta seja a sua primeira atuação profissional na cidade, Samuel Úria, confessa em entrevista ao JM, que a Mealhada não lhe é de todo estranha. A ligação é antiga, afetiva e… gastronómica. “Enquanto apreciador de leitão, fui várias vezes parar à Mealhada”, recorda com humor e carinho. Mas as memórias vão além da gastronomia: com família a viver na Figueira da Foz, os percursos regulares até lá passavam, inevitavelmente, pela Mealhada. “Cada vez que íamos visitar a família, parávamos sempre na Mealhada para comprar pão”, conta. E acrescenta, sem hesitar: “Ainda hoje tenho na ideia que esse é o melhor pão de Portugal.”
Essas pequenas paragens transformaram-se em memórias que agora, anos depois, se cruzam com a música. A atuação na Mealhada ganha, por isso, um sabor particular – entre o regresso a um lugar familiar e a vontade de partilhar novas canções com quem o acompanha.
Conte-me um pouco como começou esta paixão pela música?
Não conheço ninguém que não goste de música. A minha mãe era professora de música particular, eu não assistia às aulas que ela dava, mas havia muito instrumentos musicais em casa que me levavam a experimentar a tocar. Chegado à adolescência há uma ligação afetiva à música, e que também é quase uma espécie de insígnia hierárquica dentro da escola, não só a música que ouvimos, mas também se a fazemos tornamo-nos pessoas destacadas, e adolescência é toda sobre o destaque que temos. Aprendi a tocar guitarra sozinho e comecei a ater as minhas primeiras bandas por volta dos 14/15 anos. Portanto, esta paixão pela música vem desde há muito tempo.
Como nasce uma canção? Vem primeiro a letra, a música a melodia?
O ideal, e é uma ideia um pouco romântica, era que de repente qualquer tipo de inspiração que eu não consigo designar me segredasse ao ouvido, música e letra em simultâneo. E já aconteceu, e é um momento quase de epifania quando acontece. Mas, ultimamente, diria que nos últimos 10/15 anos, e sobretudo agora que assumo a música como uma atividade profissional principal, em que tenho que ser mais metódico, não posso esperar pela inspiração, tenho que puxar por ela, normalmente eu começo pela música, porque já me oferece uma estrutura e já me dá balizas sobre as quais depois eu construo o próprio ritmo da letra. Já me dá o número de sílabas que eu tenho de usar, então a melodia é a primeira coisa que eu ataco. Normalmente faço à guitarra, escrevo uma melodia, e depois, assim que tenho mais ou menos alinhavado as primeiras frases da canção, posso depois também mudar alguma parte da melodia. Mas, ultimamente, tem sido sempre a música primeiro.
O seu novo disco, “2000 A.D.” saiu em dezembro, como tem sido a receção do público?
Tem sido muito boa! A primeira exposição que o disco teve, que foi na crítica, foi ótima, transversalmente ótima, e eu fico muito feliz. Por muito que, às vezes, os músicos digam que a crítica não interessa, e é verdade que não interessa para aquilo que fazemos, eu acho que não há nenhuma má crítica que nos demova de fazer música. Mas, ainda assim, quando são críticas boas, acho que há ali uma espécie de ouro sobre azul, porque já estamos a fazer uma atividade que gostamos, e depois ainda temos pessoas especializadas a falar, bem, isso é um incentivo.
Mas, em termos de público, as primeiras reações que eu recebi, sobretudo redes sociais são muito boas, porém também é natural que as pessoas que me seguem, as pessoas que se manifestam são pessoas que gostam. As que não gostam ou ficam caladas, ou falam mal em fóruns aos quais eu não tenho acesso ou estou distraído. Mas, agora, em 2025, e sobretudo a desde o final de fevereiro, março, e agora abril com mais intensidade, estou a levar o disco para os palcos na minha digressão, e aí, sim, tem sido mais especial, porque, de repente, estou a testar as canções, que existiam só no formato físico do disco, mas agora têm a existência em palco, que é recíproca, porque as canções vivem também da reação e manifestação que o público tem.
E estou felicíssimo com esta reação do público. Estou a ficar mal habituado, porque se algum palco em que eu agora pisar, as coisas não corram bem, vou ficar muito desiludido, porque estou a ser apaparicado até agora.
Tem ficado surpreendido com esta reação…
Tem surpreendido muito…
A maior parte das pessoas que, de repente, se tornaram o meu público, ou seja, pessoas que eu tenho vindo a conquistar, de alguma forma estão muito ligadas às canções antigas, porque elas conheceram-me através de um determinado disco ou canção, e cada vez que eu vou tocar a algum lado, eu já sei que vou ter mensagens, as pessoas já pedirem-me canções específicas, que são canções do passado, não são canções do presente.
Então, estou sempre um bocado receoso, ou pelo menos sei que vou estar a apalpar a terreno com as canções novas. E então, mesmo estando perante um público que me conhece, há sempre uma dose de incerteza quando estou a levar canções novas. E então, mesmo os meus alinhamentos tendem a ter uma dose de canções antigas e canções novas, e as coisas serem demonstradas, acamadas por coisas antigas, um bocado para precaver, mas já percebi que não era necessário, porque, de facto, tem havido uma grande identificação das pessoas com as canções novas.
Sendo assim, considera que as mensagens que estão nas músicas têm o impacto que esperava?
Eu acho que sim. Como eu escrevo discos com alguma regularidade e são também temáticos, ou seja, os meus discos, pelo menos para mim, eu sei que isto é um conceito que, para o autor, tem muita importância e faz muito sentido, e eu sei que, para boa parte do público, aqui houve até as coisas de uma forma quase adormecida, quase uma banda sonora latente que está lá atrás, não faz tanto sentido as palavras. Escrevo regularmente e também tenho a pretensão que os meus discos sejam um reflexo do tempo que eu estou a viver.
E não sendo tempos fáceis, sendo tempos conturbados, por muito que eu às vezes deseje não ser tópico nas minhas canções, não ser um cronista do meu tempo, eu sou premiável a que o presente seja a situação mundial, do país, a pessoal mais próxima, acabe sempre por verter presente as minhas canções de uma maneira mais velada ou menos velada, mais ou menos subtil, mas está sempre presente. As minhas canções acabam por ser fruto do tempo em que são escritas, que trazem uma mensagem ou contestatária, ou resignada, ou com falta de esperança, ou com muita esperança, porque a esperança também é necessária em tempos desesperados. Então, mais do que a minha intenção, eu sinto-me um veículo dos tempos em que vivo.
Vai participar no Vodafone Paredes de Coura. Como se sente ao partilhar o palco com artistas internacionais?
É um festival em que tenho participado todos os anos, já toquei das vezes nos palcos principais. Estou muito mais motivado pela diversão que eu vou ter e pela diversão que eu espero também provocar às pessoas do que pensar que há uma responsabilidade por tocar com bandas internacionais. Neste festival, normalmente são alinhamentos em que eu puxo mais pelas guitarras, coisas mais agrestes. E nesse sentido, o que me rodeia em termos de cartaz é menos importante e pesa menos daquilo que me rodeia em termos de paisagem e de público.
Em entrevistas anteriores disse que quer aprender com os que considera melhores. Quem são as principais influencias que moldam o seu processo criativo?
As minhas influências maiores eu nem sei se estão na música. É verdade que há muitos músicos que me fazem querer escrever canções, não quero imitá-los, mas só pelo simples facto de eu perceber que há pessoas que eu admiro tanto e que estão a utilizar uma forma de arte que é muito popular, que é muito fácil de chegar às pessoas e que me tocam tanto. Então quando ouço uma canção, por exemplo, do Bob Dylan do Springsteen, ou do Cohen, quero fazer música, não igual à deles, mas motivado por perceber que há pessoas que se entregaram e que semearam coisas tão importantes no panorama da cultura popular, que é a cultura mais transversal, sobretudo a partir do século XX.
Estreia-se nos coliseus em outubro. Quais são as expetativas?
As expectativas são muito grandes. Tendo em conta que ando com um pé em vários sítios de maior destaque, continuo a ser um artista desalinhado e alternativo, e de média dimensão, e nesse sentido, é preciso ter arcabouço que é necessário para encher um Coliseu, mas acho que o que me preocupa mais até ir aos Coliseus é dar bons concertos. Tenho de justificar às pessoas que vão assistir aos concertos, como agora na Mealhada, em Paredes de Coura, e de seguida em Ílhavo, que eu mereço estar num palco maior, porque quero ser um entertainer, e que se divirtam com as minhas canções, que reflitam, que se emocionem, e então eu estou a sentir mais o peso dos concertos que tenho até aos Coliseus do que provavelmente os concertos dos Coliseus.
Fica nervoso antes dos concertos?
Não, eu nunca fico nervoso antes de um concerto, que é uma coisa extraordinária. Eu não me orgulho disso, porque eu acho que o nervosismo de alguma forma traria um formalismo que ditava que eu estou a levar isto muito a sério, que me preocupo muito com isto, mas por outro lado, é um prazer tão grande estar em palco. O máximo de sentimento prévio que me permito ter é alguma ansiedade, mas não é uma ansiedade castradora, é uma ansiedade de querer muito que as coisas aconteçam rapidamente, que o tempo passe depressa. Nervosismo, jamais.
Que significado é que tem para a sua carreira apresentar-se nos Coliseus?
Em termos promocionais, e sobretudo falo em nome das pessoas que trabalham comigo, tenho uma equipa para trás de mim, uma agência, um management, uma banda, em termos promocionais, fazer um Coliseu é um passo muito importante que pode proporcionar novas experiências e se calhar leva a mais palcos e também em termos de comunicação, são salas que privilegiam que a palavra passe.
Como é que vê atualmente o panorama musical português?
É verdade que eu vejo com olhos viciados, porque faço parte deste mundo da música, se calhar há coisas que me escapam. Grande parte dos músicos com quem eu privo e que são meus amigos, acho que há uma comunidade muito saudável de amizade dentro da música portuguesa, e então vejo com grande favor aquilo que está a acontecer.
Também tenho a felicidade de lidar com músicos com carreiras maiores que eu conheço, com os quais privo, que são os meus amigos, escrevo para eles, também tenho a alegria de poder estar presente em espírito de missão de em concertos pequenos, de descobrir bandas novas, de ir a lugares, nem sequer têm licença de ter concertos, mas estão a fazê-lo, e acho que é curioso, vejo que há um fervilhar muito grande de novos projetos, de novas sonoridades, de novas bandas, e algumas que eu acho que podem ter até algum sucesso internacional cantando em português, que é uma coisa rara.
Que desafios é que os novos artistas enfrentam?
Eu acho que os grandes desafios que os artistas enfrentam tem a ver com algo que não controlamos. O estado da economia global não é favorável, porque de repente nós somos os parentes pobres da economia, e eu admito que assim seja, porque de facto nós não somos uma primeira necessidade, mas depois também, também temos que ser vocais quando de repente nos batem nas costas, como por exemplo aconteceu durante a pandemia, em que de repente os artistas eram o garante da sanidade mental do mundo, mas ainda assim era o parente pobre que era dispensável quando alguma coisa tivesse que cair. As artes e a cultura estão sempre nas margens e nas franjas, e muito dependentes da ideia liberal de se houver público para isto, tudo bem, o público financia aquilo que está a acontecer. Eu tenho uma ideia diferente em relação a isso, porque acho que um país e uma democracia, tem que privilegiar as artes e as formas de expressão, não só aquelas que o público gosta e entesoura, mas aquelas que o público ainda não descobriu.
Para este tipo de artes que o público ainda não descobriu tem de haver apoios, incentivos e essencialmente educação para as artes. É preciso educar desde bem cedo as crianças nas escolas para outras formas de arte que não só aquelas mais comuns.
O que é que as pessoas que o vão ver no Cineteatro Messias podem esperar?
Em meu nome e em nome da banda, podem esperar a entrega total, a identidade de pessoas que querem muito estar presentes, marcar aquela noite, proporcionar um bom espetáculo, falar ao coração, falar às ancas, para as pessoas se mexerem, falar às palmas, vou levar canções novas e antigas, e vou querer muito que a Mealhada se torne um ponto recorrente dos meus concertos.