
Ser sexagenário adensa as vivências passadas e leva-nos a sentir com mais emoção as ocorrências a que nos sujeitamos no tempo. Razão que leva a trazer para aqueles que tenham a coragem de ler este texto, um tema que há muito se afigura de elevada justeza.
Quem nasce num meio rural e pobre, nunca consegue avaliar as perdas e ganhos comparativos a outros que beneficiaram de potenciais mordomias.
A verdade é que a infância, em qualquer quadro que se tenha vivido, deixa-nos marcas que jamais conseguimos apagar. Delas fazem ou fizeram parte um alargado universo de pessoas, onde se evidência as crianças com quem partilhamos bons e maus momentos.
Foi companheiro, quase inseparável, desde o início da idade escolar. Vivia, na altura, próximo do largo da aldeia e eu, mais distante, na rua que se designava por Outeiro. Apesar de percorrermos caminhos diferentes, era difícil entrar na sala de aulas um sem o outro. Chegávamos muitas vezes mal calçados, a tinir de frio, com a nossa sacola de cotim às costas e, só depois de nos saudarmos, seguíamos para as carteiras que o mestre Prof. Joaquim Andrade vigiava. Os intervalos serviam para rever os temas mais variáveis, como para programar o "assalto" ao local onde existisse fruta.
Crescemos em sã convivência. Os nossos pais aceitavam a nossa amizade, o que nos permitia ser mútuos convidados para o "sarrabulho" e "ceia da matança" do porco. Aprendi, com esse meu amigo, a conhecer o perfeito estado de maturação dos diospiros, depois de uma amarga experiência com o fruto, desviado do quintal do Dr. Elias, que se apresentava bonito, mas nos deixou com a boca áspera.
Os anos passaram sem que existisse corte ou desvio da nossa amizade. Já rapazolas, disputávamos a chegada à Praia de Mira, nas “pasteleiras” que dispúnhamos. Para meu desgosto era quase sempre ele o vencedor, pois usufruía de grande aptidão para pedalar a bicicleta.
A adolescência passou e os anos mais marcantes da juventude, o que nos forçou a algum afastamento. A imposição do serviço militar exigiu caminhos totalmente opostos.
Alguma sorte em meu benefício permitiu cumprir, essa forçosa obrigatoriedade, bem próximo da minha residência no continente. O mesmo não aconteceu ao meu bom amigo. Vestiu a farda bem mais longe e foi incorporado numa "companhia " mobilizada para a Guiné.
Eu constituí família e tenho o privilégio de, há quase cinquenta anos, usufruir do bom e menos bom que a vida nos proporciona.
Esse meu velho companheiro não teve a mesma sorte. A 12 de Outubro de 1970, numa operação militar, em confronto com o inimigo da época, não resistiu aos destroços provocados por uma bala que trespassou o seu crânio, roubando-lhe a vida de vinte e um anos.
Perdeu-se o conterrâneo, o amigo, o irmão, o familiar e o filho.
Pobres pais que carregaram o peso do desgosto com tanta amargura, até ao final de vida.
Pobre mãe que nunca mais conseguiu forças para superar tamanha dor. A vivência em permanente angustia, desencadeou tão complexas patologias que a empurraram para um fim de vida precoce.
Está a aproximar-se a data que marca os cinquenta anos após esse fatídico acontecimento. Era oportuno marcar essa data com algo visível que avivasse a memória dos vivos e transportasse à geração presente e futuras os horrores da perda de um ente querido em tão trágicas circunstâncias. É imperioso que os jovens de hoje e do amanhã, tenham presente o terror que, os também jovens naquele tempo, sentiam com a permanente ameaça de serem obrigados a viajar para continentes desconhecidos, para combater numa guerra que só interessava a alguns.
É forçoso não deixar esquecer esse período trágico que originou a morte de 8831 jovens (leiam bem, oito mil, oitocentos e trinta e um!...) e manchou de luto todo o nosso país.
É, pois, chegada a hora de perpetuar o nome de JOSÉ DA CRUZ MAMEDE, atribuindo o seu nome, em placa toponímica, a uma rua, um largo ou praça na terra que o viu nascer.
Medida que será justo estender a mais dois combatentes da nossa freguesia, que morreram pela mesma causa:
Alípio de Jesus Delfim, natural da Silvã, morto em combate em Angola, a 5 de Setembro de 1965. Osvaldo Simões Godinho, natural da Vimieira, morto em combate em Moçambique, a 11 de Agosto de 1973.
Foi destes jovens que a nossa freguesia ficou órfã nesse conflito que designaram como "Guerra Colonial".
É à nossa freguesia que assenta o dever de colocar, aos olhos dos vivos, os nomes daqueles que, em nome do País, lhes ofereceram a morte.
Verdadeiros "HERÓIS DA TERRA"
Casal Comba - Mealhada