“Fui a primeira mulher a tornar-me polícia no concelho da Mealhada”
Natural da Mealhada, Emília Almeida sempre foi uma mulher determinada, habituada a lutar com garra pelos seus objetivos.
Natural da Mealhada, Emília Almeida sempre foi uma mulher determinada, habituada a lutar com garra pelos seus objetivos. Desde cedo se destacou pela dedicação aos estudos e pelo esforço constante para alcançar os seus sonhos. Antes de encontrar o seu verdadeiro caminho profissional, trabalhou como empregada doméstica e chegou a tentar seguir a carreira de enfermagem. No entanto, o destino tinha outros planos. Aos 28 anos, tornou-se agente da Polícia de Segurança Pública (PSP), assumindo um lugar de destaque ao ser a primeira mulher a exercer esta profissão no concelho da Mealhada.
Corria o ano de 1972, uma época marcada por profundas transformações sociais e económicas. A emigração masculina era intensa, e muitos homens partiam em busca de melhores condições de vida, o que provocava escassez de candidatos nos concursos da PSP. Esta falta de mão de obra levou à abertura de vagas destinadas a mulheres, num setor até então predominantemente masculino. Embora mal remuneradas e pouco valorizadas, estas funções começavam a abrir portas às mulheres mais corajosas e determinadas — como Emília Almeida.
Hoje, com 80 anos, Emília Almeida partilhou com o JM as suas memórias numa conversa emocionante e reveladora. Recordou como era ser mulher polícia numa altura em que isso ainda causava estranheza a muitos, falou-nos dos desafios enfrentados, , mas também das conquistas, das amizades e das peripécias que viveu ao longo de uma carreira que ajudou a abrir caminho para outras mulheres no mesmo percurso.
Emília Almeida sempre foi profundamente crente em Deus, guiando a sua vida pelos valores cristãos da fé, da solidariedade e do amor ao próximo. Desde há muitos anos, exerce com enorme sentido de missão o papel de ministra extraordinária da comunhão, levando a eucaristia — e, com ela, conforto, esperança e presença — àqueles que, por motivos de saúde ou idade, já não conseguem sair de casa.
Pertence ao Grupo Sócio-Caritativo da Mealhada, onde partilha o seu tempo e dedicação com outros voluntários, sempre com um sorriso no rosto e uma palavra amiga. É com simpatia, humildade e uma generosidade contagiante que se entrega, de alma e coração, a esta tarefa que considera um verdadeiro chamamento.
Para Emília Almeida, mais do que uma responsabilidade, este serviço é uma forma de continuar a cuidar, a ouvir e a estar próxima de quem mais precisa — um testemunho vivo do que significa servir a comunidade com espírito cristão.
Quando se candidatou à PSP já era casada. Como é que o seu marido reagiu à novidade?
O meu marido já exercia a profissão de PSP, foi ele que me avisou que iam abrir concursos para mulheres, eu respondi prontamente que também ia concorrer. Naquela época o meu marido, fruto da sociedade em que estava inserido, pensava que as mulheres tinham de estar em casa, mas ele não me contrariou, deixou-me à vontade para eu decidir e fazer o meu caminho.
O que é que fez para passar nos testes de admissão?
Sentia algumas dificuldades a escrever, para colmatar essas falhas de português comecei a fazer ditados e cópias depois do trabalho quando chegava a casa.
Era um trabalho que queria muito?
Sim, perdi o meu pai muito cedo e desde então assisti, ainda em criança, ao esforço imenso que a minha mãe fazia para criar sozinha seis filhos. Sempre tive o desejo de continuar os estudos, mas, infelizmente, as condições financeiras não o permitiam. Por isso, desde nova, procurei um trabalho estável, algo que me garantisse uma vida mais digna e segura. Na verdade, toda a minha vida foi pautada pela luta por uma vida melhor. Acredito profundamente que há uma grande diferença entre não conseguirmos atingir um objetivo apesar do esforço, e simplesmente não fazermos nada para o alcançar. Eu sempre escolhi lutar.
Depois de tanto esforço passou nos exames?
Sim, passei! Depois do exame escrito, ainda tive os exames médicos e físicos, mas passei em todos.
Estava prestes a tornar-se Polícia. Como é que o seu marido reagiu?
Depois de eu ter passado nos exames o meu marido chamou-me à atenção que aquilo era um serviço de muita disciplina, que tínhamos que ser muito exemplares nos nossos procedimentos, e ainda havia o facto de ele também ter a mesma profissão, havia muitas regras para os casais. Assimilei e aceitei tudo aquilo que ele me disse e segui em frente com o meu objetivo.
Como foi a adaptação à nova profissão?
Estivemos sempre em Coimbra. Durante os primeiros três meses tivemos a instrução, aprendemos tudo o que tínhamos de fazer como as rondas e como agir perante determinadas situações.
Tornou-se polícia em 1972 e em 25 de Abril de 1974 deu-se a Revolução. Como viveu esse momento?
Naquele dia, estava a cumprir um serviço especial, a fazer fiscalização a algumas lojas à civil. Aquele foi um momento de grande incerteza e tensão. Ninguém sabia como a situação iria evoluir nem qual seria o desfecho da Revolução. Recordo-me de ter ido ao quartel onde estavam os agentes da PIDE, pois o meu marido estava lá a trabalhar. O povo estava revoltado e queria matar quem estava no quartel, por isso, a polícia foi chamada para proteger os agentes da PIDE. No entanto, até os próprios polícias tiveram de se refugiar no interior do quartel, tal era a situação caótica. Foi, sem dúvida, uma época muito complicada, e a pressão era enorme, tanto a nível profissional quanto pessoal. Durante uma semana inteira, não pudemos ir para casa. Ficávamos de prevenção no comando, com a tensão e o medo a acompanhar-nos a cada minuto.
Quer revelar alguns momentos engraçados que tenha vivido?
Lembro-me particularmente de um momento vivido nas festas da cidade de Coimbra, em honra da Rainha Santa Isabel. Quando a procissão terminava, a nossa função, como polícias, era formar um cordão humano para proteger a população — uma espécie de encerramento simbólico da cerimónia.
Já nas escadas de Santiago, começámos a ouvir uns estrondos vindos da Praça do Comércio e, de repente, vimos pessoas a fugir daquela direção. Instintivamente, pensei que precisava de ir ver o que se passava e comecei a correr para lá. Foi então que um senhor me agarrou e perguntou: ‘É polícia e vai fugir?’ Respondi prontamente que não, que estava a ir verificar se alguém precisava de ajuda.
Hoje em dia, olho para esse momento com algum humor, mas na altura, admito que não achei muita graça.
O que tinha acontecido?
Tinham rebentado umas lâmpadas dos candeeiros, mas as pessoas andavam assustadas e tinham medo de tudo.
O que é que gostava mais de fazer nas suas atividades de polícia?
Gostava de fazer o posto sinaleiro, nos cruzamentos, hoje em dia já existem muitas rotundas e já quase não existe esse tipo de serviço.
Como é que agia no seu dia-a-dia enquanto PSP?
Sempre optei pelo diálogo com as pessoas. Procurava resolver tudo da melhor forma, explicando a situação e o que não estava correto. Era assim que eu trabalhava. Desde que não houvesse prejuízo para terceiros, fazia questão de esclarecer tudo com calma. Mas, se alguém me desobedecesse ou não colaborasse, aí sim, eu adotava outra postura.
Sentiu algum tipo de descriminação por ser mulher?
Eu não pensava nisso, não dava importância a esse tipo de coisas e como tal, passavam-me ao lado. Não costumo sofrer por antecipação, vivia um dia de cada vez intensamente, ainda hoje sou assim. Contudo deixe-me que lhe conte uma coisa. Quando eu abordava algum homem para o chamar à atenção de um mau estacionamento, as esposas é que não queriam que eles obedecessem a uma mulher polícia.
Além de Coimbra, fez serviços onde?
Também estive na Figueira da Foz. Aliás, lembro-me de um episódio muito engraçado dessa altura. O comandante da Figueira tinha pedido reforços a Coimbra para o verão e corria até o rumor de que iam mulheres, tanto que já tinham preparado uma camarata para as receber. Bom… não sei o que se passou, mas a única mulher que acabou por ir fui eu!
Na verdade, eu não queria ir. Tentei perceber porque é que tinha sido a única a ser destacada, e o Comissário explicou que era porque o meu marido também ia. Cada dia é uma oportunidade de aprender algo, e assim foi nesse serviço à Figueira da Foz — retirei aprendizagens importantes das experiências que vivi por lá.
Como foi a sua evolução profissional dentro da PSP?
Estive na cozinha da PSP, na messe, gostava muito de cozinhar e também servia os Comandantes e os comissários, foi um trabalho que gostei muito de fazer… Depois ainda estive na secção de justiça.
O que é que fazia na secção de justiça?
Estava na secretaria onde organizava todos os processos existentes, por exemplo: dos acidentes, e registava todos os ofícios que vinham dos tribunais. Também gostei muito de estar nesta secção onde trabalhei durante 6 anos. Contudo a informática começou a aparecer e, apesar de achar que os computadores são muito úteis, pensei que seria demasiado para eu aprender, decidi reformar-me.
Reformou-se com que idade?
Com 55 anos.
Enquanto PSP sempre viveu sempre em Coimbra?
Vivíamos no Bairro da Relvinha — aliás, por lá moravam também outros militares das forças de segurança. Fui muito feliz nessa casa, ao lado do meu marido. E, ainda hoje, sonho muitas vezes com a polícia, com aquela casa e com ele. São memórias que guardo com muito carinho.
Autor: Jornal da Mealhada
