Sábado, 18 de Outubro de 2025

A Raridade dos Abraços Banais

A Raridade dos Abraços Banais

Opinião

A Raridade dos Abraços Banais

Foi um abraço inteiro — longo, apertado, efusivo

Quando o afeto sincero deixa de ser costume e passa a ser exceção, algo merece ser pensado.
Estou a tomar um café numa esplanada da Baixa de Coimbra quando, a poucos metros de mim, dois amigos se encontram e se abraçam com uma intensidade que me apanha de surpresa.
Não foi um cumprimento apressado, daqueles que mal tocam os ombros e já procuram o telemóvel. Foi um abraço inteiro — longo, apertado, efusivo. Um gesto que interrompeu o fluxo normal daquele espaço da cidade e despertou olhares curiosos, sorrisos de lado e até um ou outro aceno de cabeça, como quem comenta para si: “São maluquinhos.”
E talvez fossem. Maluquinhos no melhor sentido possível: os que ainda se atrevem a sentir.
Aquela cena frente a mim, transformou-se em imagem que não me saiu da cabeça. Porque havia ali qualquer coisa de raro, quase fora do tempo. Não apenas a amizade em si, mas a coragem de a tornar pública, física, visível. Num mundo que se tornou cada vez mais virtual e contido, um simples abraço tornou-se um pequeno ato de resistência.
Veio-me então à memória um outro episódio, vivido há alguns anos, num domingo de manhã na Curia. Chegávamos, eu e a minha mulher, para o café habitual, quando fomos abordados por um casal simpático e três crianças sorridentes. Seguravam um pequeno cartaz onde se lia: “Damos abraços.” Parámos, trocámos um olhar e, quase sem pensar, saímos do carro. Abraçámos. Fomos abraçados. E voltámos ao carro com uma sensação estranha — a de que tínhamos dado e recebido algo verdadeiro, sem saber ao certo de onde veio nem porquê.
Mais tarde soubemos que se tratava de uma família alentejana, de Grândola — terra da fraternidade, por coincidência. Ele, médico, ela professora de História – ambos despidos de suas profissões – e três filhos entre os seis e os doze anos, hospedados num hotel local . Eram apenas cinco pessoas felizes, decididos, naquele dia, a partilhar a sua felicidade em forma de afeto. Simples assim.
Recordei este episódio com ainda mais intensidade há uns dias. A Curia foi recentemente foi palco da Feira do Livro Solidária, evento que muito prezo e onde, por razões extraordinárias, não pude estar presente. Custou-me a ausência. Mas talvez por isso mesmo, ver aquele abraço em Coimbra – um dia antes – tenha sido mais do que um acaso. Foi como um sinal. Uma espécie de substituto simbólico do que me faltou viver presencialmente.
E como a vida adora ironias – nalgum lado li – foi precisamente nessa ausência forçada na Curia que perdi a oportunidade de receber um autógrafo de Pedro Chagas Freitas no seu livro que já li, reli e consulto a espaços “A Raridade das Coisas Banais”. Título certeiro. Porque, sim, os grandes abraços são banais. Ou deviam ser. E é exatamente por isso que, hoje, são tão raros.

Vivemos tempos estranhos. O toque tornou-se suspeito, o afeto passou a ser medido, o abraço… exceção. Substituímos a presença pelo scroll, a conversa pelo emoji, a proximidade pelo algoritmo. E, no meio disto tudo, esquecemo-nos do essencial: o que nos humaniza são os gestos pequenos. Os banais. Os que, por isso mesmo, se tornaram raros.
Este artigo não é um manifesto, nem um apelo comovido. É apenas uma partilha. Um olhar. Um convite discreto: que abracemos mais. Que olhemos mais nos olhos. Que sejamos, de vez em quando, como aqueles dois amigos na rua, ou aquela família com um cartaz na mão. Porque mesmo sem palco nem plateia, há abraços que mudam o dia. E, às vezes, até a vida.

Fernando Simões

Autor: Jornal da Mealhada

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