Terça-Feira, 28 de Outubro de 2025 às 12:34

Uma questão de perspetiva

Uma questão de perspetiva

Opinião

Uma questão de perspetiva

Viajar de comboio é mais do que deslocar-se: é habitar o tempo. E talvez quem mais o critica nunca tenha […]

Viajar de comboio é mais do que deslocar-se: é habitar o tempo. E talvez quem mais o critica nunca tenha verdadeiramente embarcado.
Recentemente, ao ouvir um debate sobre a ferrovia em Portugal, dei por mim a perguntar: quantos dos participantes já teriam realmente viajado de comboio?
Falaram do transporte ferroviário como algo ultrapassado, cheio de atrasos, desconfortável, quase descartável. Mas será que falavam com conhecimento de causa ou apenas a partir de conceitos preconcebidos, estranhas comparações com o “que se faz lá fora” — não especificando onde — o que leva a crer que sempre estiveram “cá dentro” — ou apenas como conhecedores da rotina do automóvel?
Eu viajo de comboio com frequência. E, ao contrário do que foi dito nesse debate, reconheço nesse meio de transporte uma forma rica de estar em trânsito. No comboio, leio, ouço música, escrevo, descanso. Escuto e descubro histórias de vida.
Partilho silêncios. Vejo o país a passar e a mudar lá fora, paisagem após paisagem como num cinema. Há tempo para estar — e isso é raro.
Curiosamente, muitos dos que desvalorizam o comboio parecem ser os mesmos que aceitam, sem grande crítica, o quotidiano do trânsito: horas dentro do carro, sozinhos, parados, a entrar e a sair da cidade, exaustos antes mesmo de começarem o dia ou com a paciência levada ao limite no fim do mesmo. Essa experiência é vista como inevitável, aceite ou normal. Já o comboio foi ali tratado como um problema.
Recentemente, muito se falou de um incidente insólito: um comboio perdeu uma carruagem — felizmente, sem consequências de maior. Rapidamente, o episódio foi amplificado e usado quase como prova irrefutável da suposta fragilidade da ferrovia.
Curioso como um caso isolado gera tanto alarme, quando, nas estradas portuguesas, se registam anualmente milhares de acidentes com perdas humanas reais — e isso parece já fazer parte da “normalidade” do trânsito. Apenas neste balanço de riscos e impactos, talvez valesse a pena ponderar com mais calma o que realmente colocamos em causa… ou não.
Digo isto como utilizador habitual do comboio, mas também como alguém que conduz com gosto e faz muitos quilómetros ao volante. Não se trata de escolher lados, mas de sermos mais justos na forma como falamos dos caminhos que percorremos.
Mas, no fundo, tudo depende da perspetiva. Pensei nisso ao rever uma fotografia que tirei há pouco tempo em Campanhã: uma
composição ferroviária parada na estação, captada em linha reta, mas com profundidade. A sua imagem ia mudando dependendo do ângulo com que a olhava. Como a ferrovia: há quem veja apenas o que falta, e há quem veja o que é possível.
O comboio não é apenas um meio de transporte. É uma forma de viver o percurso. Um espaço onde o tempo tem outro ritmo — mais humano, mais atento, mais friendly, se quisermos ser modernos. Talvez devêssemos repensar o que significa “atraso”: será estar 10/20 minutos parado numa linha férrea ou duas horas preso no pára-arranca, sem um livro, sem conversa, sem janela para o mundo?
Portugal precisa, sim, de investir na ferrovia. Modernizá-la, expandi-la, ligá-la verdadeiramente ao país que queremos cada vez melhor. Mas esse investimento também começa por mudar a forma como falamos sobre o comboio. Por abandonar preconceitos que já não se justificam. Porque às vezes, aquilo que uns veem como obsoleto, outros veem como futuro.
É preciso senti-lo, vivê-lo. Talvez mesmo aprender a gostar de ter tempo para ter tempo.
Viajar de comboio é, para mim, um privilégio. Uma pausa ativa. Um lugar de observação.
Uma experiência que recomendo.
E como acontece na fotografia: tudo depende da perspetiva com que se vê!

Autor: Fernando Simões

Find A Doctor

Give us a call or fill in the form below and we will contact you. We endeavor to answer all inquiries within 24 hours on business days.