Ensaio sobre a Indignidade
Na passada quinta-feira celebrou-se o Dia do Município em Mortágua, com a habitual sessão solene no Centro de Animação Cultural. […]
Na passada quinta-feira celebrou-se o Dia do Município em Mortágua, com a habitual sessão solene no Centro de Animação Cultural. Como manda a tradição, tivemos os discursos do Presidente da Assembleia Municipal, o ilustre Doutor Afonso Abrantes, e também do Presidente da Câmara Municipal, o carismático Zé Júlio, além de uma outra intervenção por parte de Amândio Torres, o Secretário de Estado das Florestas e do Desenvolvimento Rural. Recado para aqui, recado para acolá, não se pode dizer que tenham havido grandes novidades de substância em nenhuma das orações. O Presidente da Câmara fez o seu papel, sensibilizando o homem do Governo para a vergonha da Barragem do Lapão e ainda para o abandono da nossa região, no que toca às imprescindíveis acessibilidades que como todos sabemos são uma preciosa ferramenta de desenvolvimento de que infelizmente não dispomos. Por incrível que pareça, ainda há relativamente pouco tempo estive a estudar a história das invasões francesas no território mortaguense, em conjunto com os meus alunos da Academia Saber+, e pudemos perceber que as forças invasoras se orientaram neste sentido precisamente por causa das vias de comunicação. Na altura, há pouco mais de 200 anos, quem viesse do Norte, ou da rota comercial de Espanha e da restante Europa em direcção ao Sul tinha obrigatoriamente que chegar a Mortágua, onde a principal ligação se ramificava a partir de um nó que permitia seguir para três rotas diferentes, a de Coimbra e sul do país, a da Bairrada e Figueira da Foz, e finalmente a de Aveiro e Porto. Posteriormente, no período do Fontismo e das grandes infra-estruturações, também a estrada macadamizada entre Viseu e Mealhada por cá passava, tal como a linha férrea da Beira Alta, o que demonstrava a importância estratégica de um concelho que pelos vistos agora se encontra quase irremediavelmente vetado ao mais profundo esquecimento, consequência das políticas centralistas que isolam cada vez mais o Interior. Com dois dedos de testa e algum estudo de História, facilmente se verifica a preponderante importância das vias de comunicação no processo de desenvolvimento de uma específica região, pelo que se impõe a pergunta: para quando regionalizar o país de forma mais justa e devidamente ordenada? Será preciso continuar por muito mais tempo a assistir ao lento mas cada vez mais acelerado definhar das localidades do Interior? Enfim. É de uma indignidade absoluta. Adiante.
Outro assunto que está na ordem do dia no meu concelho é a controvérsia nascida pela recusa da Assembleia Municipal em atribuir a medalha de ouro de mérito municipal ao antigo Comandante dos Bombeiros Joaquim Gaspar, um tema que é absolutamente incontornável, até pelas implicações políticas óbvias que carrega consigo. Vamos por partes. O Quim Gaspar dedicou meio século da sua vida ao quartel dos bombeiros, 37 anos dos quais como Comandante da instituição. Bastaram dois votos contra para que esta condecoração fosse chumbada, o que nos possibilita diferentes leituras. Por um lado, é inequívoco o argumento que se refugia no chamado Regulamento de Atribuição de Galardões do Município, onde efectivamente está prevista a não atribuição em caso da existência de votos contra, mas por outro lado que raio de procedimento democrático é este que não respeita a vontade de uma esmagadora maioria? Não faz qualquer tipo de sentido, na minha opinião. De seguida, vamos às pessoas. O voto nominal é secreto, mas neste caso concreto, em que nos reportamos a um meio pequeno, onde praticamente toda a gente se conhece, é de uma incrível falta de coragem, para evitar um mais apropriado vernáculo, que os dois ilustríssimos membros da Assembleia, certamente de idoneidade à prova de bala, não nos quisessem presentear com uma declaração pública de voto, onde sustentassem devidamente o porquê da sua recusa em concordar com tal atribuição. Mas não. Como ratos de anonimato que são, refugiam-se no protector silêncio dos fracos. Já agora, e perguntará naturalmente qualquer pessoa que não esteja mais por dentro dos meandros da política local mortaguense, a que propósito terá isto acontecido? Comerá o antigo Comandante Quim Gaspar criancinhas ao pequeno-almoço? Não. Claro que não. O seu mérito é indiscutível, e a sua dedicação à causa pública foi sempre inexcedível. O grande problema é que apesar da parcial renovação de 2013, continua a respirar-se um ar demasiado bafiento no salão nobre da Câmara, que é o anfiteatro das operações da Assembleia. Aqui digladiam-se forças políticas à moda antiga, numa politiquice pegada em que reina o azedume e o mau fígado, apoiados na suave traição do sorriso fácil e no golpe baixo revanchista. Impera o rancor e a velha e superficialíssima máxima do connosco ou contra nós, num elementar exercício de facção que justifica por si só a estratégia adoptada. A este propósito, um dia Charles de Tocqueville lembrou com inusitado brilho que em política, a comunhão de ódios é quase sempre a base das amizades. No fundo, é esta a natureza da cooperação institucional entre a Câmara e a Assembleia, apesar da vontade que existe em querer passar uma imagem diferente para o exterior. O ilustre Doutor Afonso Abrantes comentou o caso ao Jornal do Centro, atirando por completo a responsabilidade para a Câmara Municipal, por esta não ter proposto a alteração do Regulamento em tempo útil. Esqueceu-se, pois claro, que esse mesmo Regulamento nasceu no meio do seu reinado de duas décadas e meia, mas lá está, o orgulho pelo mérito total e indevidamente fulanizado por todas as coisas boas que se fizeram nesta terra não tem, pelos vistos, correspondência quando se trata de assumir a responsabilidade pelo que de mau também se fez. Nada que surpreenda ninguém.
A verdade é que há demasiada gente ingrata, colérica, envelhecida e cheia de vícios nos principais centros de decisão da política mortaguense, fruto de justificações várias. É preciso correr de vez com uma grande parte deles, sendo que para isso é fundamental que se pratique pelo menos alguma democracia no seio das representações partidárias locais. A não atribuição do reconhecimento ao Quim Gaspar é uma vergonha absoluta, e é mais uma prova cabal das más práticas políticas que infelizmente se verificam em Mortágua, onde impera a caça às bruxas e pelos vistos já não se respeita mesmo ninguém. Enfim. É de uma indignidade absoluta. Adiante!
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Opinião de Mauro José Tomaz
Autor: Jornal da Mealhada
