Autor: Jornal da Mealhada
Quinta-feira, 21 de Março de 2013
A cultura Pop, tal como a conhecemos, distingue-se pela sua voracidade. Move-se num frenesim de marabunta, envolvendo as suas vítimas oferecidas ao altar da celebridade, deixando nada além de ossos polidos à luz impiedosa de um sol mediático. Pode-se dizer que tem algo de sacrificial e de autofágico, com cada nova estrela pop a oferecer corpo e alma para comunhão com o grande público, lenha para arder no fulgor da sua própria celebridade. Não é de todo algo novo um artista oferecer para escrutínio público pedaços da sua própria vida; há quem diga que a obra de arte é indissociável da vida do autor e ainda que o próprio trabalho gerado pelo artista tem uma influência quase profética na vida deste. As neuroses auto-obsessivas de Mário de Sá Carneiro, as visões assombrosas de Rimbaud, os traços febris de Egon Schiele, as impressões oníricas de Salvador Dali, até mesmo a inquietação estilística de Picasso, muito disso encontra paralelos quase assustadores com o percurso de vida dos mesmos. E não será inevitável que assim seja perguntamo-nos? Pode uma mente, por muito criativa que seja, escapar na totalidade das sombras projectadas do exterior?
No caso da música Pop, e perdoe-me quem achar de mau tom misturar campos tão distintos, são inúmeros os casos de obras contaminadas pelas vidas de quem as fez. É verdade que um dos grandes poderes da arte é fazer-nos encontrar nas palavras (ou imagens, ou melodias….) de outra pessoa o espelho das nossas inseguranças e anseios, mas hoje debruçamo-nos sobre um álbum cuja concepção e conteúdo estão inextricavelmente ligados a toda uma trama quase telenovelesca. Para começar, os Fleetwood Mac responsáveis por Rumours são a segunda encarnação de uma banda nascida em Inglaterra nos anos 60, então um combo de blues, ancorado na secção rítmica de Mick Fleetwood (bateria) e John McVie (baixo) e liderados por Peter Green. Esta primeira formação da banda não resistiu aos anos 70, e em 1974 Mick Fleetwood, em busca de um novo guitarrista, deparou-se com um duo de belos californianos às voltas com uma carreira ainda embrionária. Impressionado com o talento de ambos, recrutou-os no que parece agora um golpe de estratégia genial, pois seria com a adição de Lindsey Buckingham (guit e voz) e Stevie Nicks (voz) que a alquimia dos Mac iria finalmente transformar tudo o que tocava em ouro. Não nos esqueçamos do quinto elemento desta equação, Christine McVie, mulher de John, o baixista. Os primeiros frutos desta nova equipa apareceram em Fleetwood Mac, álbum homónimo de 1975, que conheceu um sucesso que até ali tinha sido algo elusivo à banda.
Foi na crista da onda desse sucesso que os Fleetwood Mac começaram a preparar o álbum seguinte. A banda, no entanto, debatia-se com uma fragmentação pessoal grave. Os dois casais da banda, Buckingham e Nicks e John e Christine McVie, separaram-se; o casamento de Mick Fleetwood também terminou, seguindo-se um affair entre o baterista e Stevie Nicks. Todos os membros da banda se encontravam emocionalmente devastados, problema exacerbado pelas longas horas sem sono passadas no estúdio, quase sempre envolvendo consumo de cocaína e álcool. Nada de novo, se pusermos este quadro no contexto dos excessos do rock n rol dos anos 70. O que ninguém poderia prever em circunstâncias tão pouco auspiciosas era que delas emergisse a obra-prima da banda. Com canções como Dreams, Songbird, The Chain ou Never Going Back Again, forjadas nas chamas dos seus desencontros amorosos, cada membro da banda contribuiu indelevelmente na criação de Rumours. A ironia amarga contida no disco não escapou a Mick Fleetwood, que assim o baptizou porque a ele todas as canções soavam a boatos indiscretos, um rendilhado de pecados de minucioso detalhe.
Lançado em 1977, Rumours comemorou em 2012 35 anos de sucesso e drama de bastidores, tendo chegado agora a edição comemorativa, que amplia o álbum original, em formato CD e vinil, mais dois CDs de versões alternativas e maquetes, um CD com material ao vivo, e ainda um DVD com um documentário de meia hora, feito na tournée de 77 para promover o disco. Vale a pena voltar a ouvir para lembrar não só as histórias dos artistas que o fizeram, mas principalmente para nós mesmos revisitarmos esse pequeno fragmento das nossas próprias vidas.
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Texto de João Vasconcelos, 02/2013