Quinta-feira, 16 de Fevereiro de 2012

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O novo ano amanheceu chuvoso,pouco convidativo, em consonância com as promessas da crise. Na praça de Ferrari desço do autocarro […]

O novo ano amanheceu chuvoso,pouco convidativo, em consonância com as promessas da crise. Na praça de Ferrari desço do autocarro e tento caminhar pelos intervalos da chuva que não é grossa nem permanente , nem sequer fria apesar dos montes no horizonte ocidental dos Alpes marítimos estarem brancos de neve. È numa das etapas que percorro pelo centro da cidade, o soco antigo, que encontro o vicolo, ou bêco dos Pessagnos. A rua, se lhe podemos chamar rua , segue apertada entre prédios altos que a fazem mais pequena ainda. Rua medieval com séculos de humanos e de história, entrelaça-se com outras em direcção ao porto de mar, o Porto Antico e nessa história passada é que me dou de frente com o comandante Pessagno, um genovês de alma lusitana , teve filhos e netos lusitanos, mais os filhos dos mestres que levou consigo, muitos deles com família que se fixou em Lisboa e não regressou mais ao chão natal.

É o dia um do mês de Janeiro do longínquo ano de 1317. Dia monótono como o de hoje, incaracterístico. O comandante, acompanhado pela família desce até ao porto pelas ruas apertadas que deslizam suaves até á praça do Caricamento . São uma malha apertada de bêcos esconsos apertados entre a altura dos prédios, alguns deles palácios donde surgem restos da opulência doutras eras. Á Porta Sibéria param olhando a galé com uma vela latina pronta para levantar âncora, enquanto de outras bandas da cidade muralhada chegam marinheiros e gente que o acompanha na viagem. Em pequenos barcos chegam familiares de Sestri Ponente para saudações e despedidas e pouco depois zarpam do velho cais do forte leste, contornam o canal da Lanterna que lhes dá acesso ao mediterrâneo e rumam de cabotagem na direcção de Sevilha e Gibraltar.

Ao tempo reinava em Portugal o rei D. Dinis, o Lavrador , que espera ansiosamente estes homens do mar e logo se apressa a receber o comandante no Paço quando sabe da atracação da nave no cais da Ribeira. Com mostras de muito contentamento e distinção instalou-os em aposentos preparados de propósito para sua acomodação e poucos dias depois , a 1 de Fevereiro de 1317, assina o rei com o genovês Manuele Pessagno o contrato pelo qual nomeia o seu novo vassalo, Almirante de Portugal. Pelo documento se compromete aquele cidadão da Republica de Gènova a transferir-se para Portogallo , e a transformar o embrião da armada existente numa força eficiente e capaz de cruzar e defender os mares do reino, conforme técnicas de navegação e militares actualizadas. Vinte sabedores das coisas do mar que saibam bem servir para alcaides de galés, cuja vinda faz parte do compromisso assumido pelo almirante, chegarão em breve a Lisboa, recrutados entre os melhores navegantes da republica genovesa.

O monarca segue passos dos reis castelhanos que no século anterior começaram a importar mão de obra e conhecimentos oriundos da mesma republica mediterrânica , nomeadamente com a nomeação do genovês Ugo Vento para almirante maior efectuada por Afonso X. O seu sucessor, Sancho IV , nomeou para o mesmo posto Benedetto Zaccaria com a responsabilidade de defender dos piratas marroquinos a foz do rio Guadalquivir e a Andaluzia e Egidio Boccanegra teve actuacão preponderante por toda o mar romano na mesma luta. Não era em vão que os ditos genoveses eram conhecidos por bons construtores e manobradores de naves alem de possuírem a cartografia mais actualizada do mundo daquele tempo. O acto do rei Lavrador não era um passo em falso, assentava nas experiências de Castela, cujos resultados eram até ali proveitosos.

A Manuel Pessanha, nome aportuguesado, deu o monarca a sua propriedade da Pedreira em Lisboa ,com casas e todos os bens existentes, zona hoje ainda conhecida por Bairro do Almirante e que se estendia entre a actual encosta do Castelo, Rossio, Carmo, até S.Pedro de Alcântara, parte dela resultante da extinção da judiaria do Carmo e juntou á doação uma recompensa cifrada em três mil libras em moeda do reino. Ainda hoje subsiste a travessa ou rua do Almirante Pessanha, no Chiado, a perpetuar a presença do genovês.

Continua incaracteristico o tempo desde primeiro dia do ano e então entro no negócio da signora Consolata que tem os cais na frente da porta. O tempo divide-se entre a meteorogia programada de miúda, a nossa moinha , e uns momentos sem ela.

Quem chega pelo mar fa-lo por um pequeno estreito como se fosse uma pá com o cabo servindo de canal e o leque para apanhar dentro da própria urbe. Esta concha é circundada pela zona histórica , que depois subindo pelas encostas ingremes se transformam num anfiteatro ou gigantesco presépio debruçado sobre o mediterrâneo. Neste semicirculo que recebe quem chega , as fachadas das casas estão assentes em pesadas arcadas onde circula coração do porto de mar. Vende-se e compra-se tudo ao longo do comprimento do cais em numerosos negócios , onde o da comida marca lugar quase continuo.

Entro na Consolata por pedacinhos de bacalhau frito empastado em ovo e ashiugas passadas pela frigideira. É um pequeno negócio que merca pescado cozinhado no diminuto balcão atrás da porta e que além do bacalhau, vende a apreciada ashiuga , sardinha pequena do mar Ligure , pescada e preparada como uma ancestral petisco da cidade. Não é mais que biqueirão , interditado em Portugal e que se pesca noutros lados. A Italia, como a França ou a Alemanha, não são pequeninos como nós, nem alunos bem comportados e servis cumpridores, por isso não pretendem pôr fim ao costume ou á tradição das gentes quando Bruxelas manda, bem pelo contrário, mandam-nos para outro lado!

A pequena e modesta loja da Consolata, em Portugal estaria fechada pelo fundamentalismo da burocracia e pelo terror das regras cee, mas aqui funciona plenamente e é atração secular. Cumprimento a signora, já me conhece, sabe que vou ali porque sou português e gosto de bacalhau e que o mais parecido com o nosso é o dela. Na minha opinão ou gosto, claro. Ri-se,comenta a cozinha portuária mas nunca foi a Lisboa.

De meia estatura e meia idade , cara redonda , olhos risonhos e tronco cheio, mexe-se no interior da bata branca que lhe apaga os seios, entre a cozinha ao fundo e o balcão da entrada e o nome Consolata confere-me um certo sabor , na medida em que me anima o estomago de fiel amigo e me aviva memórias avulsas duma ponta Consolação em Peniche. Compro dois pezzos , são duas pastas e ás vezes uma dúzia de biqueirão e vou petiscar numa mesa da tratoria vizinha, debaixo das arcadas, bebendo um copo de vinho tinto , da Toscana, de preferência.

Ao fundo das arcadas, tão velhas como a primeira pedra da cidade, caminha resoluto Pessanha sob uma capa escura que lhe cobre corpo e membros até á altura dos joelhos e sobre a cabeça exibe um chapeu marroquino de aba larga erguido como colina. É o dia 1 de Janeiro de 1341 , o almirante regressa da batalha do Salado onde cometeu grandes feitos ao serviço de Afonso IV durante as ultimas campanhas contra o Reino Mouro de Granada levadas a cabo pelos reis católicos. O almirante honrou o seu nome e o nome do Reino de Portugal e no regresso com autorização do Africano revê o berço para respirar o ar, olhar as velhas pedras , as ruas afuniladas e abraçar os amigos. Por isso chega de Càdis num prototipo de caravela. É conselheiro e almirante real , senhor de reguengos em Sacavem e Algés e do Castelo e vila de Odemira e participa com portugueses, bascos e andaluzes na construção duma nau oceanica, uma barca leve, ágil, de fácil manobra e quilha redonda, capaz de se deslocar com mais segurança no tenebroso mar . Surge a caravela , do arabe quarab, dois ou três mastros de vela latina , uma equipagem de trinta homens , rápida e segura. Está ancorada no cais dos armazens, a oriente.

Graças a estas primeiras caravelas chegou Lanzarotto Malocello ás ilhas afortunas ou Canárias, ao serviço do rei português, conhecidas desde o tempo dos romanos e já referidas por Boccaccio. Daí o nome de Lançarote , o nome aportuguesado do que tudo indica ter sido o seu redescobridor entre 1336 e 1339.

Quando o almirante desaparece no emaranhado das ruas estreitas levanto a cabeça da minha mesa de tratoria, fecho o livro de Paolo Lingua , o italiano que me levou a estes tempos passados, aceno ao camariere , pago a conta e volto á praça de Ferrari para tomar o bus.

É tarde, o dia escurece e o frio começa a fazer-se sentir ainda que a árvore de Natal, sem outros predicados grandiosos , continue a piscar no meio da praça com amena aparência apesar da moinha que ora cai ora não cai. Génova,Janeiro,2012

FERRAZ DA SILVA

CRÓNICAS LOCAIS # 114

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Autor: Jornal da Mealhada

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