Todo o Tempo É Relativo
Entrei na estação dos correios procurando Rafael que estava na cabine telefónica tentando telefonar para o tio, o tio João. […]
Entrei na estação dos correios procurando Rafael que estava na cabine telefónica tentando telefonar para o tio, o tio João. Vai fazer oito anos no ano que vem. Estranhei a chamada, uma vez que é avesso a falar ao telefone, mas seria assunto deveras importante relacionado com a ds para que o viesse a fazer e sobretudo duma cabine pública. Procurei indagar sobre o assunto mas não me respondeu, nem sequer olhou para mim e entretanto chegou a avó que vinha igualmente para saber do nosso paradeiro. Não havia mais pessoas na sala e a menina atrás do balcão olhava imperturbável para nós. Parece pouco simpática a menina atrás do balcão e essa pouca simpatia espelha-se na face nova e inexpressiva. Saio.
Chove copiosamente na rua, mas imperturbável desço a escadas dos correios, corto á esquerda entre os dois buxos de sentinela e sigo pelo passeio do lado esquerdo enfiando os sapatos na água. Passo a velha escola e a mercearia. Não tenho qualquer percepção dos pés molhados mas desconfio que o calçado não é estanque. A chuva redobra, transforma-se mesmo num dilúvio e rapidamente as águas das vertentes inundam a estrada. Rua e largo á frente formam um rio e um pequeno mar que corre na direcção da fonte que não vejo, emparedada entre pedras do Marão e não do Buçaco, o minimo exigivel
Continuo junto ao mercado e entro na tabacariaxa0 Luísa para perguntar se ainda lá está o Rafael e a avó. Estranha pergunta se os deixei no correio! Mas pergunto. Parece-me ser a antiga proprietária que me atende e me diz que não, não está ninguém e saio de novo para o aguaceiro que me não encharca o corpo.xa0
Na Zenite, depois da barbearia, lanço um olhar para o interior e vejo a dona Hilda sentadaxa0xa0 a apanhar meias de nylon. Entro num cumprimento desmedido, do tamanho de tempo e do tempo em que a não vejo. É outra a senhora presente ante os meus olhos, anos e anos mais nova, como aliás o cenário por onde tenho passado não parece corresponder á realidade. Responde efusivamente á minha saudação e queixa-se dos ossos, do esqueleto, da coluna. Respondo-lhe mais ou menos que é natural, a idade não faz milagres, bem pelo contrário, mas temos que nos adaptar ás condições do percurso. Beijo-a e despeço-me retornando á rua tirando do bolso uma pequena nikon portátil que costumo trazer comigo e paro no princípio do largo do Casino que nunca existiu e na curva da estrada tiro uma fotografia á avenida e ao cinema perante uma réstia de sol que entretanto rompeu. Depois volto á esquerda e subo rente ao muro do patamar do Hotel dos Banhos, sobre o qual se debruça uma nespereira velha de grande porte. Julgo que eram duas nespereiras, para onde foi a outra? Penso e duvido de mim próprio.
O João Sargento está encostado à parede do hotel com duas pessoas que não conheço e o doutor ou coisa semelhante fala do outro lado da sala. Cumprimento-o e galgo os degraus que me levam ao átrio, dois ou três. Olho a avenida á minha frente e volto a retirar do bolso a nickon portátil para disparar nova fotografia deste miradouro esplêndido mas quando o vou para fazer o cinema deslocou-se para trás do arvoredo perfilado nas duas faixas e estranhamente não o capto no visor. Avanço para a direita sobre o patamar onde na época se sentam hóspedes em cadeiras de lona e aponto de novo o aparelho. Faço um zoom que instantaneamente me deixa a fotografia desfocada e disparo a máquina duvidando sobre se apanhei ou não o Teatro Avenida. A fita porém, vejo num grande cartaz, é Ulisses, meu velho amigo dos bancos escolares e o altifalante berra Avenidaxa0 Navarro abaixo a marcha Radetsky, de Strauss.
É quando surge o sujeito, o comprador, presumo, do hotel. Fino e engravatado.
Numa lengalenga automática e despropositada digo-lhe que o edifício é uma obra prima da estação termal, de valor arquitectónico semelhante ao de muitos outros edifícios que fazem parte da vila, edifício de época sem a classificação que deveria ter para que fosse preservado na traça original e não vitima da cega destruição de que são objecto as estruturas. Apesar disso acrescento que aqui, fizeram um mastodonte, um paralelepípedo sem estilo e sem inserção harmoniosa no centro cívico das termas. O homem diz que sim, é uma calamidade o que comprou mas nada está perdido ou destruído. Porém eu sei que o vai fazer. Até porque já está feito. Olhei para trás e atrás da porta semi aberta do hotel vejo a funcionar uma recepção que confundi com um bar. Ou seria mesmo um bar. Duvidei.
-Não destrua a traça original do edifício, continuei, marca um tempo das termas que já não existem, nem o tempo nem as termas. Respeite o ocre da cor, a tradição das janelas portuguesas, o telhado de barro vermelho e as nespereiras dos aquistas.
Desconfiei estar noutro tempo. Como o tempo muda e não muda dentro de nós! Seráxa0 que mudamos apenas nós? Apenas oxa0 evoluir? Involuntariamente posso descer ao poço do inconsciente para trazer á memória um pedaço de espaço que me pertenceu.xa0 E pertence, alojado nas cavernas cerebrais de células e neurónios que se encarregam de me identificar em permanência com muito mais força e mais complexidade que um moderno computador.
-Recicle os azulejos azuis da fachada leste, teimei, retire-os sem os partir e volte a coloca-los do lugar a que pertencem. Não faça este caixote agressivo e despersonalizado, respeite o património construído na sua traça de época. Tão pouco que temos de memória colectiva, de referência cultural e tudo se destrói! Não estrague mais este exemplar dum edifício carismático e de família !
-Onde estão os azulejos? Perguntou–me.
-Na parede que dá para os banhos. Retorqui.
Porque razão disse ao homem que estavam sabendo que não estavam? Quando se presumiaxa0 já terem sido vendidos a algum novo rico para engalanar a casa? O sujeito, que pensoxa0 segunda vez ser comprador do hotel voltou ao silêncio, escutando-me com paciência. Não sei de que tempo era, donde vinha, se tinha nome ou não. Podia nem ser ninguém mas foi de facto alguém com quem traveixa0 um curto diálogo e dividi a paisagem na nossa frente sem cartão de identidade dos novos, dos que possuem numero próprio, de contribuinte, de eleitor, da conta bancária sobretudo para quem não tem dinheiro e não sei se passaporte e porta moedas electrónico.
Continuava no mesmo sítio com a pequena nickon na mão direita aguardando que o cinema se colocasse de vez no sítio dos teatros, dos ensaios, dos cenários ou do dia da estreia para tirar a fotografia correcta. Voltei a olhar para o interior da porta aberta onde pessoas se movimentavam como se fossem sombras. Não vi quem eram, não conheci ninguém mas o bar ou recepção, fosse o que fosse, estava aberto conscientemente. Observei o homem ao meu lado imaginando que estava preparando uma resposta para dar às minhas observações. Não sei verdadeiramente se tinha intenções de o fazer, nem sei verdadeiramente se o fez. Quando o presumi a abrir a boca para dizer qualquer coisa, acordei subitamente. Se respondeu foi no onírico mundo do sonho do meu eu já acordado. Mas vivi de igual maneira, no sonho inconsciente, o pensamento consciente do que por vezes me vem á cabeça. De qualquer modo, reminiscências dum passado que ainda hoje é presente. Tempo-espaço, ou espaço-tempo que me parece voar mais depressa que a velocidade da luz, ou dos neutrinos que a parecem superar segundo estudos do Cern. Não quereria citar o génio de Einstein, nem o bosão de Higgs , até porque não passo de leigo na matéria, mas de facto foi há segundos que vivi este presente e já lá vão mais de quarenta anos de mundo sobre a memória neurológica da permanente fusão entre os dois extremos.xa0 xa0xa0xa0xa0xa0xa0xa0xa0xa0xa0xa0xa0xa0xa0xa0xa0xa0xa0xa0xa0xa0xa0xa0xa0xa0xa0xa0xa0xa0
Digam lá se a experiência é ou não do foro da relatividade!
Génova, Janeiro,2012
CRÓNICAS LOCAIS#113
Autor: Jornal da Mealhada
